O Coração Ainda Bate. O caminho

Inês Meneses escreve sobre as paixões que não foram amor.

O rapaz não era um equívoco da beleza. Tinha um ar selvagem, pouco cuidado, o que, bem vistas as coisas, não correspondia à verdade. Estava sempre na noite, nos concertos, no meio da música. Vivia o fim-de-semana até de manhã, e de manhã cedo começava a semana no seu outro lado em que ninguém o apanhava. As pessoas gerem a noite e o dia porque são novas. Um dia todos diremos: “Agora prefiro jantares.”

Vivia há muitos anos com a mesma namorada, a namorada desde esse tempo em que a palavra “namoro” só então lhe começou a fazer sentido. Agora já eram amigos. Só amigos, mas era como se prometessem cumplicidade até ao resto da vida. Dormiam juntos e viam as mesmas séries, riam-se e cozinhavam, mas eram duas pessoas de sexos diferentes a viver na mesma casa. E assim seguiam cada um na sua vida que já tinha um assento na solidão. Podemos acentuar uma palavra ou já estarmos sentados nela. Neste caso, as duas coisas pareciam fazer sentido.

Um dia, o rapaz que usava camisas de xadrez desfraldadas à medida que a noite avançava apaixonou-se por uma mulher mais velha. Talvez fossem 15 anos de diferença, talvez mais. O rapaz nunca pensou ser possível uma mulher daquelas reparar nele, no meio da noite desfraldada. Começaram a conversar. Trocavam centenas de mensagens por dia. Faziam, como todos os pares apaixonados, uma troca justa de canções, de filmes, de piadas. A vida tem sempre mais piada quando estamos apaixonados e a noite ainda não nos parece um desgaste.

De manhã, porque à semana ele acordava cedo, ela recebia sempre uma mensagem e depois outra e mais outra, até ele se atrasar, e ele dizia que se sentia outra vez vivo. Porque podemos ser novos e nada nos espantar.

Ela também se sentia viva. Sabia que estava a percorrer um caminho cheio de partidas, mas ainda assim como não seguir em frente?

A troca de mensagens terá durado duas semanas? É possível. As pessoas têm nesse combustível a verdadeira paixão. A paixão acontece muito antes de dizermos que estamos apaixonados. É aquela sintonia que se vai tecendo de forma invisível e nós já pressentimos que nos está a acontecer mas não queremos verbalizar. A paixão é a forma mais evidente de nos sentirmos vivos. E ambos queriam estar vivos para poderem continuar a tactear esse caminho que ainda não tinha nome.

Ao fim de duas semanas marcaram um encontro. Ele tremia, ela observava-o em todos os seus detalhes. A camisa vinha dentro das calças, cinto visível, um cheiro a perfume que a inebriou naquele e nos dias que se seguiram. Conversaram, riram. Foi só isso. No regresso, ainda no caminho, ele já lhe mandava mensagens. Talvez lhe tenha dito que ela era muito bonita, que cheirava bem, que se ria mais do que ele pensava. Ambos se convenciam de que, cada vez mais, o caminho já não era tão invisível e começava a ganhar forma. E havia mais canções que ele ouvia no carro e dizia: “Quase tive um acidente: Estou feliz.” Essa felicidade é a que vem antes de dizermos que estamos apaixonados. Dizemos só para nós. Por medo. Como um livro que não está acabado e, então, não se fala dele.

Um dia, ele disse que não podia continuar com a relação dele que já tinha acabado há muito, mas que agora se tornava insustentável. Ela ficou em silêncio percebendo os riscos que isso comportava. Ele avisou-a de que a conversa lá em casa ia acontecer. Ela continuou muda. Num fim de tarde de um dia que era de semana, ele veio a pé ter com ela. Vinha pelo passeio e ela foi ao encontro dele. Estavam a fazer o mesmo caminho, mas de lados opostos, então ela atravessou a rua para o abraçar. Era uma etapa nova da vida dele. Talvez da vida dela. Às vezes somos só oportunidades na vida dos outros para eles começarem outro ciclo. E o amor acaba antes de ter começado.

Esse amor que ficou na paixão acabou um mês depois, mas quando faço o mesmo caminho sei exactamente o ponto em que atravessei a rua para o abraçar.

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