A culpa de quem tem depressão

A depressão é uma doença, e não apenas um estado de espírito, mas na maior parte das vezes ela não fica para toda a vida.

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Daniil Onischenko/Unsplash
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Há pouco tempo, uma pessoa que acompanho em consulta por depressão disse-me que, ao regressar ao trabalho depois de estar de baixa por causa dessa mesma doença, foi surpreendida com a decisão da sua chefia de lhe retirar todo o trabalho de responsabilidade que antes executava.

Para justificar essa decisão, o chefe terá dito que percebia perfeitamente que uma pessoa pudesse estar de baixa por depressão, mas que jamais seria de confiança para funções mais importantes, porque “nunca se sabe se está bem da cabeça”. Terá ainda acrescentado: “Sabe, eu já sei que agora toda a gente tem depressão, mas não consigo empatizar com quem se entrega a essas doenças.”

Histórias como esta são, infelizmente, ouvidas em consulta muito mais vezes do que deviam — aliás, uma vez já é demais. Refletem o estigma ainda associado à depressão e ao seu tratamento. Todos sempre soubemos que esse estigma existia, mas agora ele fica documentado nos resultados do inquérito “A visão dos portugueses sobre a depressão”(1) promovido pela Lundbeck no contexto da campanha “Depressão sem rodeios”.

De acordo com os resultados do estudo, 86,2% dos portugueses sabe que a depressão é uma doença, mas 70,9% considera que não é particularmente valorizada pela sociedade. Eu diria mais, não só é desvalorizada, como continua revestida de ideias erradas, como exemplifica a história que contei, e que está em linha com outros dados deste inquérito.

Por exemplo, 29% dos inquiridos considera que a depressão é uma doença que fica para toda a vida e a mesma percentagem de pessoas acha que é apenas um estado de espírito. Estas duas concepções sobre a depressão são diametralmente opostas — e estão ambas erradas. A depressão é uma doença, e não apenas um estado de espírito, mas na maior parte das vezes ela não fica para toda a vida. Quando o diagnóstico é atempado e o tratamento adequado, o objetivo é resolução completa da situação e a recuperação total do funcionamento habitual.

Acontece, porém, que muitas pessoas consideram que o tratamento já está concluído quando na verdade não está, o que pode estar relacionado com o desconhecimento sobre os sintomas da depressão. Por exemplo, mais de 91% sabe que a tristeza persistente é um sintoma de depressão, cerca de 90% reconhece como sintoma a perda de autoestima ou sentimentos de culpa, e mais de 85% identifica a falta de prazer e interesse como característica da doença.

No entanto, no caso dos sintomas cognitivos (problemas de memória, concentração ou raciocínio) ou dos problemas do sono — que são muito frequentes e são precisamente os últimos a desaparecer no decurso do tratamento —, a percentagem baixa para cerca de 75%.

Além disso, quase 100% dos inquiridos afirma que a depressão tem um impacto negativo sobre a vida profissional dos doentes, mas quando questionados sobre quais os sintomas mais impactantes, os sintomas cognitivos são relativamente pouco valorizados.

Outro equívoco que fica claro no estudo em análise refere-se às causas da depressão, uma vez que 86% dos participantes afirma que o principal fator de risco para a doença são as perdas e os traumas. Isso está em linha com a ideia tantas vezes ouvida em contextos que não só o clínico de que para ter depressão é preciso ter acontecido algo de marcante na vida. Para além disso não ser verdade — a depressão pode aparecer mesmo sem um acontecimento de vida identificável —, essa ideia pode fazer com que quem está doente não procure ajuda.

De facto, a frase, “mas eu tenho tudo na vida, não há razão nenhuma para ter depressão!” continua a ser das mais ouvidas. Por outro lado, esse conceito está muitas vezes ligado a um outro, igualmente popular ente aqueles que comentam a depressão — “só deprime quem não é suficientemente resiliente para dar a volta aos acontecimentos”. Esta culpabilização de quem tem depressão só traz mais sofrimento a quem já o tem de sobra.

O estigma ainda existe — e é um obstáculo ao diagnóstico e tratamento da depressão. Se é verdade que o conhecimento sobre saúde mental tem aumentado e que quase toda a gente já reconhece que a depressão é uma doença, os dados aqui apresentados revelam também que subsistem várias ideias erradas que condicionam a procura de ajuda e o cumprimento do tratamento. Podem, para além de tudo, atribuir as culpas a quem está a sofrer. Por isso, há uma mensagem tem de passar: como em qualquer outra doença, ninguém escolhe adoecer ou “entregar-se”. Agora, só falta que todos escolham perceber isso.


(1) O inquérito "A visão dos portugueses sobre a depressão" foi promovido pela Lundbeck Portugal e envolveu um total de 1215 inquiridos, telefonicamente, entre os dias 27 de setembro e 3 de outubro de 2022. Todos os indivíduos inquiridos são maiores de idade e residem em território nacional. A margem de erro do estudo é de 2,81% para um intervalo de confiança de 95%.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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