Mark Power: o mar dá poesia, a luz e a sombra brincam na areia

O fotógrafo da Magnum Photos reedita, 30 anos depois, o livro bestseller The Shipping Forecast. Um retrato nostálgico, misterioso, do litoral europeu.

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Zona Marítima de Southeast Iceland. Terça-feira, 20 de Agosto 1996. Variable 3, becoming southwesterly 3 or 4. Fair. Moderate with fog banks. Mark Power
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“E agora a previsão para a navegação marítima”, anuncia a voz do radialista da BBC 4, acompanhado de uma agradável e datada harmonia orquestral, antes de dar início a um discurso praticamente indecifrável. “The general synopsis at 0 1 00. Low, Southeast Iceland 995 moving slowly southwest, filling 1 00 7 by 0 1 00 tomorrow. Low, Biscay 958, expected Wales 1 00 5 by the same time. Low, Trafalgar 1 00 3, moving slowly east, losing its identity.”

O boletim, conhecido no Reino Unido por The Shipping Forecast, difundido quatro vezes por dia há mais de 100 anos na rádio pública britânica, tem como objectivo alertar para as condições de navegabilidade, mas tornou-se numa espécie de “pano de fundo para milhões de britânicos”, explica ao Ípsilon o fotógrafo da Magnum Photos Mark Power. “Também fez parte da minha infância”, recorda, aludindo a “um velho gramofone de mogno” que estava ao canto da sala de estar nos anos 1960.

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Mapa das zonas marítimas

A escuta do programa era, então, sinónimo de conforto e de segurança. “Tinha sempre a mesma duração, utilizava sempre o mesmo vocabulário, básico, mas bonito, que era entregue com solenidade.” Por ser incompreensível para a maioria das pessoas, reflecte, “está mais próximo da poesia do que de um assunto de vida ou morte”, que era a sua verdadeira função. “Talvez mais importante do que tudo, o boletim enfatiza a ideia de que o Reino Unido é um território insular, rodeado de água, afrontado por ondas e ventos”, algo que o fotógrafo considera ser um elemento fundamental da identidade britânica.

Foi com base na “poesia” do boletim que Power desenvolveu, entre 1992 e 1996, o projecto The Shipping Forecast, cujas imagens, realizadas ao longo das 31 zonas marítimas que banham as costas das Ilhas Britânicas e as que lhe são contíguas, deram corpo àquele que se tornou no primeiro fotolivro de sua autoria. Tornou-se num inesperado bestseller logo após a publicação. Reeditado este ano pela londrina Gost com a adição de mais 100 fotografias do que na versão original, o livro revela em maior profundidade e detalhe o seu périplo pelo território costeiro europeu.

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Shannon, Quinta-feira, 4 de Abril de 1996. "Southerly 6 to gale 8, decreasing 4 in northwest. Occasional rain. Moderate or good." Mark Power

Nas páginas do livro, Power escreve que tudo começou em 1990 numa visita ao Royal National Lifeboat Institute, em Great Yarmouth, cidade plantada na costa Leste de Inglaterra. “Na loja de recordações, exposto numa das paredes, estava um pano de cozinha que tinha a impressão do mapa das zonas marítimas. Pode parecer difícil de acreditar, mas nunca me tinha ocorrido que aqueles nomes estranhos, e, no entanto, tão familiares – Dogger, Fisher, German Bright e os restantes –, eram zonas geográficas reais.”

Nos dois anos seguintes, Power formou na sua mente o primeiro esboço do projecto. A costa da zona marítima de Wight, próxima de Brighton, a cidade onde residia (e ainda reside), no Sul de Inglaterra, foi a primeira que documentou. Muitas se seguiriam, incluindo as zonas que banham a costa portuguesa, Finisterre (que engloba a costa do Norte de Portugal continental) e Trafalgar (que engloba o resto da costa continental portuguesa), designações que constam do mapa marítimo britânico.

Nas 170 páginas de The Shipping Forecast figuram 163 fotografias a preto e branco que são acompanhadas por subtítulos que contêm a previsão para a navegação marítima das 6h do dia em que foram tiradas. “Existe uma correlação implícita entre imagem e texto”, explica. “Mas não estou a tentar ilustrar a previsão. O que me interessa realmente é a beleza da linguagem, a sua natureza esotérica. Tentei produzir fotografias que são metáforas visuais da previsão; imagens que, tal como o texto, não se explicam a si próprias, mas que permanecem misteriosas e (esperemos) bonitas também.”

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Zona marítima de Trafalgar. Sexta-feira, 25 de Março de 1994. Westerly veering northerly 3 or 4, increasing 6 in south. Mainly fair. Moderate with fog patches. Mark Power

Mark não optou pela narrativa dos “pescadores heróicos”, que seria talvez a mais óbvia tendo o mar como conceito de base, ou mesmo da espectacularidade dos fenómenos meteorológicos típicos da orla costeira. “Não há fotografias de arrastões ou de grandes ondas a lavar os conveses”, observa. “Não demorei muito tempo a perceber que o trabalho devia ser feito do ponto de vista do observador acidental.” As suas imagens são, assim, contemplativas e retratam, de forma nostálgica, distante, a apropriação humana do litoral. É o vestígio o grande protagonista das fotografias que Power realizou com recurso à câmara de grande formato que se tornou, ao longo da sua extensa carreira, indissociável da sua assinatura. “Procurei fazer imagens que fossem misteriosas, que não fossem auto-explicativas” como as que fazia, na altura, ao serviço de jornais e revistas. “Na verdade, eu achava-as muito mais interessantes quando não explicavam rigorosamente nada.”

Luz e sombra a brincar na areia

O mar prateado sob um céu negro abre e fecha The Shipping Forecast. Tudo o que está entre os dois marcos se submete ao rigor da composição e atenção ao detalhe do olhar de Power, características que se tornaram distintivas do seu trabalho, sobretudo nos últimos anos. Luz e sombra brincam nos areais. O Inverno enferruja os letreiros e encerra as zonas balneares, deixando espaços de diversão à mercê do regresso do Sol. Há betão industrial que expele fumo negro em direcção ao mar. Há nevoeiro, intempérie, mas também comunidades em festa e em luto. Há quotidianidade – algo que, “com a passagem dos anos, se tornou mais interessante de observar”, comenta o fotógrafo. Power seguia “uma regra, na falta de uma palavra melhor,” para a elaboração do projecto: “Cada imagem deveria ter relação com a costa, de alguma forma, mesmo que o mar não fosse visível”. Essa pista explica a diversidade das imagens que recolheu. “Tornou-se num jogo interessante de jogar.”

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Zona marítima de "Thames", domingo, 7 de Janeiro de 1996. "Southeasterly veering southwesterly 5 or 7. Rain then showers. Moderate or poor becoming good." Mark Power

Jogou-o ao longo de quatro anos, por vezes a bordo de uma autocaravana, longe de casa durante semanas, sozinho ou na companhia da esposa. E nem sempre foi uma experiência “alegre ou gratificante”, refere no texto que assina no recente fotolivro. “A verdade é que, em grande parte do tempo, eu tinha imensas dúvidas e sentia que tudo aquilo era um desperdício criminoso de tempo e de dinheiro.” Quando algo de extraordinário e imprevisível acontecia, “quando uma boneca sem cabeça aparecia no passeio junto de um sósia de Ian McCulloch”, exemplifica, Power recuperava o alento para seguir. “À medida que o projecto avançava, tornava-se claro que as melhores imagens eram uma espécie de metáfora visual para a natureza confusa do subtítulo que as acompanhava. Por outras palavras, estas fotografias que eram, à sua maneira, inexplicáveis e misteriosas ecoavam as palavras estranhas e esotéricas das previsões para a navegação.”

A nova edição surge 30 anos depois do início do projecto, algo que o fotógrafo ambicionava há muito tempo. Para fazê-la revisitou 1197 folhas de contacto, cada uma com 12 fotogramas. “Foi um processo interessante. Tinham passado décadas desde a última vez que tinha olhado para as folhas de contacto. Foi uma tarefa laboriosa, mas muito, muito compensadora.” A melhor parte foi “descobrir alguma imagem da qual me tinha esquecido completamente ou, mais alarmante, alguma que não me lembrava de sequer ter tirado”. Gradualmente, ao longo de meses, Power reuniu uma nova selecção. “Tinha um novo livro nas mãos, muito diferente do original.”

Em 1996, Power tinha seleccionado 63 fotografias para publicação – já a presente edição contém exactamente mais cem. “Na primeira edição, eu obedecia a um conjunto de regras rigoroso; não podia, por exemplo, incluir mais de três imagens por cada zona marítima. As 31 zonas tinham de estar representadas – algo que ainda se aplica a esta nova versão – mas agora não me preocupo se favoreço ou não determinadas zonas. Afinal, umas deram-me mais do que outras.”

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Zona marítima de Trafalgar, fotografia captada num local não especificado da costa de Portugal. Sexta-feira, 26 de Março de 1994. "Westerly veering northerly 3 or 4, increasing 6 in south. Mainly fair. Moderate with fog patches." Mark Power

As zonas do mapa marítimo britânico Finisterre e Trafalgar, que tocam Portugal continental e parte de Marrocos, não deixaram grandes recordações ao fotógrafo. “Acho que fui a Portugal duas vezes, mas não posso dizer que tenha sobressaído de alguma forma. Mas lembro-me que a luz do Sol era um problema – odeio trabalhar com sol.”

Para Power, The Shipping Forecast de 1996 e o de 2023 são dois “livros diferentes”. “Neste momento, estou mais entusiasmado com a nova edição. Os 25 a 30 anos que passaram desde o início do projecto fizeram com que sentisse que estava a editar e a sequenciar o trabalho de outra pessoa, o que, parecendo estranho, foi bastante útil”, refere. “Não sei se a nova edição traz novas camadas, mas revela a amplitude e profundidade do projecto. Afinal, quatro anos é muito tempo para dedicar a alguma coisa.”

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