“Corrida ao ouro”: a procura dos tão desejados metais para carros eléctricos deixa um rasto de miséria

Um dos países mais pobres da Terra é crucial na transição energética. E exemplo de que, se não estivermos atentos, corremos o risco de repetir a crueldade de revoluções industriais anteriores.

Trucks carrying bauxite in Guinea's Boké region in September 2022. MUST CREDIT: Photo for The Washington Post by Chloe Sharrock/MYOP
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Camiões carregados com bauxite na região de Boké, na Guiné-Conacri Chloe Sharrock/MYOP/The Washington Post
The village of Dapilon, in Guinea's Boké region, in September 2022. MUST CREDIT: Photo for The Washington Post by Chloe Sharrock/MYOP
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A aldeia de Dapilon fotografada em Setembro de 2022 Chloe Sharrock/MYOP/The Washington Post
A truck used for transporting bauxite along the mining road that cuts through Guinea's Boké region, on Sept. 19, 2022. MUST CREDIT: Photo for The Washington Post by Chloe Sharrock/MYOP
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Camião usado para transportar bauxite Chloe Sharrock/MYOP/The Washington Post
A fisherman near a mining port in Guinea's Boké region. MUST CREDIT: Photo for The Washington Post by Chloe Sharrock/MYOP
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Pescador perto de um porto mineiro na região de Boké Chloe Sharrock/MYOP/The Washington Post
A train carrying bauxite in Guinea's Boké region in September 2022. MUST CREDIT: Photo for The Washington Post by Chloe Sharrock/MYOP
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Um comboio transportando bauxite na região de Boké Chloe Sharrock/MYOP/The Washington Post

A Guiné, uma nação da África Ocidental com mais de 13 milhões de habitantes, tem as maiores reservas mundiais de bauxite – uma rocha avermelhada que é a principal fonte de alumínio. Esse metal leve, por sua vez, é essencial para veículos eléctricos, pois permite que percorram distâncias maiores sem recarregar do que se fossem feitos de aço. E ao longo da década actual, quando os especialistas esperam que as vendas globais de veículos eléctricos aumentem quase nove vezes, a procura por alumínio subirá quase 40%, para 119 milhões de toneladas anuais, segundo analistas do sector.

A Guiné já está a sentir o aumento sem precedentes nas suas exportações de bauxite, que aumentaram quase cinco vezes de 2015 a 2020, segundo estatísticas do Governo dos Estados Unidos, e os analistas prevêem que a produção continuará a aumentar drasticamente na próxima década. A região Noroeste do país, Boké, que está no epicentro da febre da bauxite, foi transformada por uma interminável cadeia de camiões e de comboios transportando o minério precioso ao longo de estradas e caminhos recém-construídos até aos portos costeiros.

Mas em toda a região de Boké, milhares de aldeões estão a pagar um preço demasiado alto, de acordo com dezenas de entrevistas com moradores de seis aldeias da região, grupos de monitorização sem fins lucrativos e especialistas do sector. O Governo guineense informou que centenas de quilómetros quadrados antes utilizados para agricultura foram adquiridos por empresas do sector mineiro para as suas operações e infra-estruturas associadas, como estradas, caminhos-de-ferro e portos. Os activistas e os habitantes locais afirmam que os aldeões receberam pouca ou nenhuma compensação. Segundo um estudo do Governo, nas próximas duas décadas mais de 80 mil hectares de terras agrícolas e 445 mil hectares de habitat natural serão destruídos pela mineração de bauxite – uma área quase do tamanho do estado americano de Delaware.

A impressionante procura por veículos eléctricos – que só para os pôr a trabalhar precisam habitualmente de seis vezes mais minerais por peso do que os seus equivalentes a combustíveis fósseis – está a impulsionar uma nova “corrida ao ouro” em relação a uma série de metais, incluindo bauxite, níquel, lítio e manganês, necessários para os construir e alimentar. Mas enquanto os veículos eléctricos são generalizadamente considerados essenciais para os esforços globais de combate às mudanças climáticas, os custos e as consequências não-intencionais de garantir estes minerais têm sido muitas vezes ignorados. Há pouca noção do preço que se paga por este tipo de exploração mineira – e que pode vir a ser cada vez maior – nas comunidades locais, nas pessoas, no ambiente e mesmo na estabilidade política, porque grande parte da actividade é feita em cantos remotos do mundo, de aldeias de pescadores na África Ocidental a ilhas distantes no Sudeste asiático.

Sem um levantamento completo, a transição para as energias verdes corre o risco de repetir a história cruel das revoluções industriais anteriores.

Quando uma empresa mineira chinesa chegou pela primeira vez, em 2016, à aldeia guineense de Kagbani, perto da costa atlântica, representantes da empresa e funcionários do Governo ofereceram empregos e dinheiro aos moradores em troca de centenas de hectares de terras agrícolas, recordou o aldeão Mohamed Sylla. Os moradores sentiram-se obrigados a aceitar.

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Mohamed Sylla, pescador da aldeia de Kagbani Chloe Sharrock/MYOP/The Washington Post

Pouco tempo depois, explosões de dinamite para construir uma estrada para a mina de bauxite destruíram as paredes de cimento da casa de Sylla, fazendo a sua esposa fugir por segurança e obrigando a família a mudar-se. Nos anos que se seguiram, disse, assistiu à destruição das colheitas de beringelas, milho e caju por camiões que transportavam bauxite e as barcaças que transportam o minério para o exterior afugentaram os peixes que antes eram abundantes.

Mulheres no Noroeste da Guiné disseram, em entrevistas, que agora desesperam por colheitas míseras e pescadores, como Sylla, de 30 anos, afirmou que capturam quantidades tão pequenas de peixe que mal conseguem sustentar-se. Os aldeões referiram que os empregos que lhes foram prometidos pela Société Minière de Boké (SMB) – consórcio que inclui uma subsidiária do maior produtor mundial de alumínio, a China Hongqiao Group – nunca se concretizaram. Os pagamentos em dinheiro mostraram-se profundamente decepcionantes.

“Estou frustrado”, disse Sylla, com as sobrancelhas arqueadas acima dos óculos escuros enquanto a voz ia alternando entre agitação e resignação silenciosa. “Mas, ainda mais do que isso, perdi a esperança.”

Sylla e outros moradores relataram que o escoamento da estrada da mina tornou imprópria para consumo a água em muitos dos rios e riachos. E, no ano passado, a bomba de água que a empresa de mineração tinha construído para a comunidade avariou e Kagbani ficou sem água.

Segundo Sylla, não foi difícil mobilizar os habitantes locais. Foram para a linha do comboio da SMB – que a empresa construiu em 2021 como meio adicional de transporte do minério – e bloquearam-na e recusaram-se a sair.

Após dois dias de protesto – um de muitos protestos na região nos últimos anos –, a empresa arranjou uma nova bomba de água, disse Sylla. Os aldeões deixaram a linha de comboio, mas, para Sylla, o abastecimento de água é consolo escasso para tudo o que perderam.

Explosão inesperada

Na estrada de terra vermelha que liga o porto costeiro às minas no interior de Boké, apareceu um enorme camião amarelo numa manhã de domingo, cortando o silêncio com a sua buzina. Dez segundos depois, apareceu outro. Depois outro, e outro, e outro.

Mesmo depois de uma noite de chuva intensa, os camiões da SMB levantavam nuvens de poeira que revestiam as palmeiras, cajueiros e mangueiras próximas da estrada. Os camiões já haviam feito a sua primeira entrega de bauxite do dia no porto e estavam a regressar às minas a céu aberto para buscar mais. Ainda nem eram 9h.

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Uma aldeia junto à estrada mineira na região de Boké Chloe Sharrock/MYOP/The Washington Post

O Governo da Guiné, na altura liderado pelo Presidente Alpha Condé, concedeu uma licença à SMB em 2015, ao mesmo tempo que a Indonésia e a Malásia restringiam as suas próprias exportações de bauxite devido a preocupações com a exploração estrangeira de recursos e a degradação ambiental.

Ao fim de seis meses, a SMB enviou a sua primeira tonelada de bauxite da Guiné, ainda antes de o Ministério do Ambiente ter concluído as suas avaliações de impacto ambiental, afirmam activistas.

A SMB rapidamente ultrapassou a Compagnie des Bauxites de Guinée – multinacional com 50 anos de existência, co-propriedade do Governo guineense e de empresas privadas, incluindo a americana Alcoa e a anglo-australiana Rio Tinto – para se tornar o maior produtor de bauxite da Guiné. Em apenas cinco anos, a produção aumentou tão rapidamente que a Guiné passou de uma quota de mercado de 6% da bauxite mundial para 22%.

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A entrada para uma mina da empresa chinesa SMB perto da aldeia de Dapilon Chloe Sharrock/MYOP/The Washington Post

Durante esse período, a revolução dos veículos eléctricos começou a ganhar força, impulsionada por uma procura sem precedentes na China, onde foram vendidos 1,8 milhões de veículos em 2020, o que exigiu quase 900 milhões de libras (mais de 408 mil toneladas) de alumínio, de acordo com a CRU, consultora empresarial que analisa as indústrias mineiras e de metais. Até 2030, quando a China, segundo as estimativas da CRU, deverá vender 18,5 milhões de veículos eléctricos, precisará de uns incríveis 8,8 mil milhões de libras de alumínio (4 milhões de toneladas).

Embora menor, o mercado dos EUA para veículos eléctricos também está a ganhar ritmo, projectando-se que cresça mais de cinco vezes entre 2020 e 2028. A cadeia de fornecimento de alumínio para fabricantes de automóveis americanos, incluindo a Ford, a General Motors e a Tesla, inclui bauxite extraída pelos dois maiores produtores na Guiné, de acordo com um relatório de 2021 da Human Rights Watch e do Inclusive Development International (IDI), um grupo de defesa dos direitos humanos com sede nos EUA que visa defender comunidades ameaçadas pelo desenvolvimento empresarial.

Ibrahima Diallo, antigo funcionário do Governo, afirmou que a rápida expansão da indústria de bauxite da Guiné é, em muitas formas, uma história de sucesso. O sector criou milhares de empregos e milhões de dólares anuais em receita fiscal. No entanto, o Governo estava mal preparado para o grande interesse nos minérios do país e faltavam meios para proteger o ambiente ou direccionar a receita para as áreas mais afectadas pelo boom.

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Ibrahima Diallo, antigo funcionário do Governo e agora instrutor e investigador em minas no seu escritório em Conacri Chloe Sharrock/MYOP/The Washington Post

"Não poderíamos imaginar, mesmo nós especialistas em mineração, que isso fosse possível", disse Diallo, que agora é instrutor e está a concluir o seu doutoramento em mineração. "Foi uma enorme explosão. E ninguém estava preparado."

“O que estão aqui a fazer?”

Aboubacar Dembo Diaby, chefe da aldeia de Dapilon, ficou perplexo quando avistou uma equipa de trabalhadores chineses a percorrer os campos de amendoim e batata naquela manhã de Primavera em 2016. Chegaram sem aviso, recordou, e estavam a cavar buracos com equipamento estranho, recolhendo amostras do solo vermelho-sangue.

“O que estão aqui a fazer?”, perguntou.

Os homens não falavam francês ou susu, a língua local, e Diaby não falava chinês ou inglês. Mas pouco depois, segundo ele, uma equipa de funcionários da SMB e do governo local chegou à sua aldeia sombreada por palmeiras para explicar. A empresa precisava de vastas extensões de terra perto de Dapilon para o principal porto da SMB. Em troca, Diaby disse que a empresa ofereceu aos habitantes da aldeia um pagamento único que variava de 200 (168 euros) a 450 dólares (cerca de 380 euros).

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Aboubakar Dembo Diaby, chefe da aldeia de Dapilon Chloe Sharrock/MYOP/The Washington Post

N'Näissata Dansoko, viúva e mãe de sete filhos, disse que inicialmente estava optimista ao ouvir os representantes da empresa falar sobre trazer electricidade, um hospital e programas de formação de emprego para a aldeia. Dansoko, que não sabe ler, contou ter assinado o documento desistindo dos seus campos mais férteis.

Quando abriu o envelope com o dinheiro, sentiu o coração quase a explodir. O maço de notas era uma fracção do que esperava com base no valor da terra – e uma fracção do que calculou ser necessário para compensar os anos de perdas que se seguiriam. "Nada", afirmou Dansoko. "Não nos deram nada."

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N’Näissata Dansoko, viúva e mão de sete filhos que vive em Dapilon Chloe Sharrock/MYOP/The Washington Post

Em todas as seis aldeias – quatro próximas às operações da SMB e duas próximas às da CBG –, os residentes repetiram versões da história de Dansoko, descrevendo pagamentos únicos que pouco fizeram para compensar as perdas de rendimentos em terras agrícolas transmitidas de geração em geração.

As duas empresas aproveitaram as frágeis leis de propriedade da Guiné, de acordo com um relatório de 2018 da Human Rights Watch, que descobriu que as empresas ignoraram em grande parte as ligações históricas dos aldeões com a terra. No relatório de 2021, a ONG afirma que as empresas tomaram para si, com pouco envolvimento público, a decisão de "arbitrariamente determinar se e como compensar as famílias pelas suas terras".

Três organizações sem fins lucrativos, incluindo a IDI, apresentaram uma queixa em 2019 em nome de 13 aldeias da Guiné, alegando que a CBG violara os seus direitos e não tinha dado às famílias a compensação adequada. A queixa foi apresentada contra a International Finance Corporation, braço do Banco Mundial, que concedeu em 2016 um empréstimo de 200 milhões de dólares (cerca de 170 milhões de euros) à CBG para a sua expansão; o caso está agora em mediação. Em 2021, a CBG concordou em parar as explosões de dinamite dentro de um raio de 1000 metros das aldeias e em mudar o tipo de explosão para diminuir o impacto. O processo de mediação virou-se agora para as preocupações das aldeias em relação ao acesso e à qualidade da água.

Actividade disruptiva

A mineração a céu aberto de bauxite é intrinsecamente disruptiva. Especialistas do sector reconhecem que a perda de terras, a perturbação de habitats da vida selvagem e o ruído e a poeira são inevitáveis. E concordam que mitigar os danos requer regulamentação efectiva, envolvimento das comunidades e supervisão agressiva. Até agora, em todos os aspectos, isso tem sido extremamente deficiente na Guiné.

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O assentamento de Hamdallaye, construído pela CBG para realojamento de aldeões que saíram das suas terras para aí serem construídas as infra-estruturas da mina Chloe Sharrock/MYOP

O Natural Resource Governance Institute, organização com sede em Nova Iorque que defende o desenvolvimento sustentável e inclusivo, deu ao Governo guineense uma classificação de "medíocre" em termos de controlo da corrupção em 2021 e uma classificação de "falhado" em relação ao Estado de direito. Mamadou Oury Bah, activista da Action Mines Guinée, afirmou que no Governo de Condé era impossível uma supervisão eficaz devido à corrupção generalizada.

Depois de Condé ser deposto pelo coronel Mamady Doumbouya, em 2021, o jovem líder das forças especiais mostrou vontade para ser duro com as mineradoras estrangeiras. No entanto, decisões do Governo de Doumbouya, incluindo a suspensão das receitas da mineração que eram partilhadas com as comunidades locais, levantam dúvidas entre os críticos sobre as perspectivas de uma verdadeira melhoria.

“Ponto cego” dos fabricantes de automóveis

A bauxite extraída na Guiné é enviada para o exterior para ser refinada em alumina (óxido de alumínio), que por sua vez é fundida em alumínio. A SMB envia o minério para a China Hongqiao Group, o maior produtor de alumínio do mundo, enquanto a CBG envia a sua bauxite para refinarias nos Estados Unidos, Canadá e Europa, de acordo com o IDI.

As principais empresas de automóveis do mundo, que compram o metal refinado, não mapeiam as suas cadeias de abastecimento de alumínio até ao nível da mina e, em resultado disso, não as controlam adequadamente para evitar abusos, segundo o relatório da Human Rights Watch e do IDI. Os grupos chamam ao minério de bauxite o "ponto cego" para os fabricantes de automóveis. Várias empresas reagiram às descobertas, citando a complexidade das cadeias de abastecimento como obstáculo para identificar a origem do seu alumínio.

O IDI diz que alguns construtores de automóveis têm levantado preocupações. Por exemplo, 11 empresas americanas, europeias e japonesas escreveram em 2021 à Aluminum Association para expressar "preocupação com a situação na Guiné" e apoiar os esforços de mediação entre a CBG e as aldeias. O IDI considerou esse um passo positivo, mas acrescentou que os fabricantes deveriam realizar as suas próprias auditorias regulares às cadeias de abastecimento.

No terreno, os habitantes das aldeias afirmam que a responsabilização é difícil de alcançar.

À sombra de uma das minas da SMB, onde os moradores dizem que as explosões de dinamite são tão fortes que não conseguem dormir e que os protestos foram reprimidos com prisões, Diallo Thierno Mamoudou disse que se sente traído pela empresa mineira em que um dia sonhou trabalhar. Há três anos, o irmão de 20 anos estava a trabalhar no campo e foi atingido na cabeça por uma pedra expelida pelo rebentamento de dinamite. Quando Mamoudou o encontrou, o irmão estava coberto de sangue, incapaz de falar.

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Diallo Thierno Mamoudou Chloe Sharrock/MYOP/The Washington Post

Na clínica administrada pela SMB na aldeia de Barkéré, um médico chinês deu penicilina ao irmão e mandou-o para casa, Mamoudou relatou. O jovem ainda tem o rosto inchado e às vezes perde a visão e o equilíbrio. Os esforços repetidos da família para conseguir mais cuidados médicos ou mesmo um pedido de desculpas da SMB foram ignorados.

“Já não quero tentar trabalhar para eles. Só quero que se vão embora”, disse Mamadou, sentado na sua casa de cimento repleta de fissuras causadas pelas explosões de dinamite.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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