Um romance inédito de Manuel Vázquez Montalbán de que ninguém ouvira falar
Primeira obra de ficção escrita pelo criador do detective gastrónomo Pepe Carvalho foi descoberta por acaso entre os seus papéis e deverá ser publicada ainda este ano pela editorial catalã Navona.
Boas notícias para os admiradores do escritor catalão Manuel Vázquez Montalbán, criador de Pepe Carvalho, um dos mais populares detectives da ficção policial contemporânea: vai ser publicado em breve o primeiro romance do autor, que se manteve inédito até hoje, e cujo dactiloscrito, com emendas manuscritas, foi encontrado por acaso na Biblioteca da Catalunha, em Barcelona, por um professor de Filologia Hispânica, José Colmeiro.
A descoberta, noticiada esta quinta-feira na imprensa espanhola, foi divulgada pela editora catalã Navona, responsável pela reedição recente de vários livros há muito esgotados de Montalbán, que anuncia para o Outono a publicação deste romance inédito, ao qual o próprio autor parece nunca ter feito qualquer alusão, e de cuja existência nem mesmo a família mais próxima estava ao corrente.
A editorial Navona não adianta o nome da obra, mas é de crer que Montalbán lhe tenha dado um título, já que a enviou (sem sucesso) ao prémio literário Biblioteca Breve, informação que consta da primeira página do manuscrito. Se o facto de não ter ganho este prémio, atribuído pela editora Seix Barral, hoje integrada no Grupo Planeta, foi determinante para o autor desistir de publicar aquele que, segundo tudo indica, teria sido o seu livro de estreia, é matéria sobre a qual se pode apenas especular.
"A caixa negra do escritor"
Usando uma máquina de escrever tradicional, Montalbán dactilografou o livro a três cores, alternando o negro, o azul e o vermelho. Deixou-o totalmente concluído e pronto a publicar, e depois, aparentemente, esqueceu-o de todo. Um silêncio ainda mais estranho se forem justificadas as primeiras reacções de quem entretanto já leu a obra.
“É um achado fundamental para se entender a obra do meu pai e é um romance que me lembrou os seus melhores textos”, diz Daniel Vásquez Sallés, filho do autor.
O responsável pela descoberta, José Colmeiro, professor de universidade de Auckland, na Nova Zelândia, e especialista em Montalbán, diz que estamos perante “uma fascinante caixa negra do escritor, que adianta de forma embrionária as preocupações, temas e obsessões que este irá desenvolver ao longo da sua prolífica e variada carreira literária”. E o editor da Navona, Ernest Folch, não duvida de que está em vias de dar à estampa “um dos acontecimentos editoriais mais importantes dos últimos anos”.
Após a inesperada morte de Montalbán em 2003, aos 64 anos – foi vitimado por um ataque cardíaco no aeroporto de Banguecoque, na Tailândia –, o seu arquivo literário ficou nas mãos da família, que acabou por o depositar em 2016 na Biblioteca da Catalunha. Esteve depois a ser catalogado até 2020, e no momento em que os investigadores iriam finalmente poder consultá-lo, surgiu a pandemia. Só após o levantamento das muitas restrições relacionadas com a propagação da covid-19 é que José Colmeiro pôde deslocar-se a Barcelona e mergulhar no espólio. Mas valeu a pena a espera: numa caixa etiquetada com a referência “1962-1965”, descobriu um romance totalmente inédito, no qual o escritor alterara nomes de personagens e lugares para iludir a censura franquista.
“Vázquez Montalbán decidiu dar nomes europeus às suas personagens, como Admunsen, Ilsa ou Laarsen, e até trocou por Leiden, uma pequena cidade holandesa, o lugar onde decorre a acção, que é sem dúvida Barcelona”, lê-se no site da Navona.
A etiqueta da caixa, esta estratégia de troca de nomes, e o facto de a novela ter permanecido inédita concorrem para persuadir a editora de que se trata mesmo do primeiro romance escrito pelo autor, que até meados dos anos 60 só publicara o ensaio Informe sobre la Información (1963), a que se seguiriam, já depois do período abrangido pelo rótulo da caixa depositada na Biblioteca da Catalunha, a estreia como poeta com Una Educación Sentimental (1967) e as primeiras obras narrativas até agora conhecidas: Recordando a Dardé, de 1969, e Yo maté a Kennedy, de 1972.
Mas não é tanto a data em que terá sido escrito que, argumenta a editora, confere importância a este manuscrito. É tratar-se de “um exercício extraordinário e vibrante, um romance narrado na primeira pessoa, cujo protagonista é claramente um alter-ego do autor, e que constitui uma crónica fascinante dos anos 60 em Barcelona, um retrato mordaz da sociedade da época, no qual aparece com crueza a vida na prisão e a luta na clandestinidade do próprio Vázquez Montalbán”.
Para a editora de Ernest Folch, este é “um achado da máxima transcendência, porque nos dá indicações da vida do escritor, ao mesmo tempo que antecipa o seu inconfundível estilo de maturidade, com a sua ácida ironia e insubornável crítica social, bem como o talento literário, que aparece aqui pela primeira vez no seu máximo esplendor, características que o converteram numa das grandes vozes da literatura espanhola do século XX”.