Se as regras fossem para todos, esta escultura egípcia com três mil anos não existia

Investigação dos Museus Nacionais da Escócia leva à reinterpretação de uma peça que intriga os egiptólogos há 150 anos e liga-a a outras produzidas na mesma aldeia de grandes escultores.

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Pormenor da escultura do Museu Nacional da Escócia, em Edimburgo Cortesia: Museus Nacionais da Escócia

A escultura com três mil anos representa um adulto ajoelhado, segurando com cuidado a criança que tem ao colo. O adulto perdeu o rosto algures no tempo – um tempo longo, já que a obra terá três mil anos – e a criança tem consigo uma série de atributos que permite aos especialistas dizer que se trata de um faraó.

Uma criança de natureza divina – assim era tido o faraó - ao colo de um adulto é algo que na iconografia cristã não surpreende – o Menino Jesus aparece ao colo da Virgem, mas também de santos e santas vários e até interagindo com pessoas comuns -, mas no Antigo Egipto é coisa rara. É por isso que a identidade do adulto representado nesta escultura do Museu Nacional da Escócia, em Edimburgo, anda a intrigar conservadores e egiptólogos desde que foi descoberta, há mais de 150 anos.

Uma nova investigação, conduzida por Margaret Maitland, a conservadora-chefe das colecções do Mediterrâneo antigo neste que é o principal pólo dos Museus Nacionais da Escócia, veio relançar o debate em torno da identidade desta figura que chegou até nós num momento de intimidade com uma criança que é também um deus.

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A escultura que anda há 150 anos a intrigar egiptólogos Cortesia: Museus Nacionais da Escócia

Pelas regras da sociedade egípcia daquele tempo, uma pessoa não poderia, sequer, tocar num faraó reinante, mesmo que fosse ainda uma criança, e muito menos pegar-lhe ao colo, lembra a jornalista Maev Kennedy no artigo que assina na publicação The Art Newspaper. Durante séculos, aliás, seria até considerado herético quem ousasse imortalizar em pedra um rei em estreito contacto com uma pessoa comum, como aqui parece ser o caso.

"No momento em que a vi, pensei: 'Aquela estátua não devia existir'", diz Margaret Maitland. “Fiquei estupefacta.”

Graças ao trabalho de pesquisa efectuado, esta conservadora tem em seu poder novas pistas para identificar a figura sem rosto, que no passado foi classificada como um tutor da criança real e até como a deusa Ísis.

Maitland acredita que esta escultura está relacionada com outras que nunca antes tinham sido associadas e que integram colecções dispersas pelo mundo, incluindo a do Metropolitan Museum de Nova Iorque e do Museu Nacional do Cairo – todas partilham o mesmo centro de produção, Deir el-Medina, uma aldeia no deserto onde viviam os escultores e outros artistas que construíram e decoraram os túmulos dos faraós.

Estudando Deir el-Medina e a própria peça, a conservadora do museu escocês chegou à conclusão de que a criança divina não é um faraó, mas a representação de um faraó – é uma escultura dentro de uma escultura.

Tudo na linguagem corporal do adulto – um homem ajoelhado de braços estendidos – aponta para que esteja a oferecer algo, explica ao Art Newspaper, algo que muito naturalmente não poderia ser o próprio faraó.

“A conclusão da autora é que os trabalhadores mais importantes de Deir el-Medina foram autorizados, de forma única, não só a construir os túmulos dos governantes, mas também a oferecer esculturas ao seu próprio templo de Hator, colocando-se em contacto mais próximo com estas imagens de poder e autoridade divinos”, pode ler-se nesta publicação.

Margaret Maitland defende ainda que a escultura terá sido feita durante o reinado de Ramsés II, que governou entre 1279-1213 a.C., e avança como hipótese que ela represente o seu escriba, um homem cujo túmulo foi localizado.

A conservadora quer agora aprofundar a sua pesquisa para tornar mais sólida esta teoria.

A escultura do museu de Edimburgo resultou de uma escavação feita por Alexander Henry Rhind, que morreu de tuberculose em 1863, com apenas 29 anos, numa das suas viagens de regresso do Egipto.

Rhind foi um dos pioneiros da arqueologia na Escócia, pondo a descoberto inúmeros sítios pré-históricos e fazendo importantes progressos na egiptologia.

Metódico, este filho de banqueiro que muito escreveu sobre o país dos faraós – é dele o livro Thebes, Its Tombs and Their Tenants – foi dos primeiros a escavar de forma sistemática os túmulos de princesas ou sacerdotes, tendo sido o primeiro a entrar num deles, em 1857, pertencente a um chefe da polícia e à sua mulher, de acordo com o site do museu.

O registo que fez da posição de cada objecto no interior deste mausoléu que é hoje conhecido precisamente como o Túmulo de Rhind foi fundamental para aprofundar os conhecimentos sobre as práticas funerárias no antigo Egipto.

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