O Coração Ainda Bate. Um sonho adiado

Inês Meneses escreve sobre o medo que adia os sonhos.

Volto muitas vezes ao momento em que uma miúda pergunta à ainda jovem Patti Smith o que quer ser quando adulta e ela responde sem hesitar: “Especial.”

É uma responsabilidade e tanto querermos ser especiais, porque se não formos, se não acharmos que somos, vamos desiludir os outros, mas, principalmente, vamo-nos desiludir com a nossa vida.

Muitas das pessoas amargas que encontramos pela frente estão zangadas com elas próprias. Não foram tão especiais quanto queriam ser e então adaptaram-se a situações que lhes sabiam a pouco, mas um pouco que por medo pareceu sempre melhor do que nada.

O medo trava os sonhos e impede passos mais audazes. O medo em nós é mais poderoso do que qualquer situação adversa. Não avançamos e a vida não acontece se não criarmos movimento.

Lembro-me de o meu pai, de quem herdei o sono leve, se levantar a meio da noite quando ouvia um cão a ladrar. Os cães ladram e sobressaltam a noite. O meu pai levantava-se sem hesitar e abria a porta para perceber de onde vinha o ruído, a inquietude. Eu também acordava e ficava com medo, invejando o meu pai por avançar na noite escura sem temer. Se eu tivesse de resumir a noite no campo a um som, seria esse, o dos cães a ladrarem inquietos. O campo amplifica o som - e o medo.

O meu pai foi sempre em frente: na noite escura e nas manhãs que ainda vinham com interrogações. Soube criar movimento. O medo nunca o apanhou.

A educação castradora vigente mandava que não se desse “passos maiores do que as pernas”, e com isso parámos gerações: gente que não se atrevia a sonhar não só por temer a "queda", mas, sobretudo, o julgamento dos outros.

Quantos de nós ficaram atrás de uma secretária quando queriam estar tão perto da ribalta? E quantos, por não serem capazes de dar esse passo maior, se limitaram a troçar dos sonhos alheios?

Acabamos sempre a julgar aquilo que invejamos ou o que ficou por fazer. Sonhos adiados dão cabo de uma vida - de várias vidas.

Lembro-me de uma mulher com dois filhos que, legitimamente, queria o melhor para eles, mas aquilo que julgamos ser o melhor para os filhos pode não coincidir com as aspirações deles. Os filhos ficaram aquém das expectativas dela, e ela, que tinha sido uma mulher dócil, com os anos tornou-se amarga, desdenhando do sucesso dos outros. Acontece nas famílias. Acontece até entre amigos próximos. Quantos filhos não sacrificaram os sonhos maiores para corresponderem àquilo que os pais tinham projectado para eles? “Segui Economia, mas queria Belas-Artes.” “Fui engenheiro, mas eu queria ser actor.”

Há milhares, milhões de histórias de vidas que não se concretizaram, que se desviaram - como quando saímos na placa errada e ficamos perdidos no caminho. Nos protagonistas dessas histórias que não se viveram há um travo amargo que é atenuado por pequenas alegrias, mas sobretudo com uma ideia de vida amestrada. Conformamo-nos, mas, suspeito, o sonho continua por ali amachucado.

Queremos, muitos queriam, ser especiais e não puderam. Uns temeram desenhar essa aventura que se afigurava quase impossível, outros tiveram esse sonho cortado pelas circunstâncias. Muitas pessoas que encontramos amargas, sem razão, vivem de costas voltadas para esse sonho. E tristemente acordam todos os dias a pensar que podiam ter tido outra vida, mas não conseguiram, não arriscaram. A família não permitiu.

As pessoas que fazem aquilo com que sempre sonharam são efectivamente privilegiadas: umas não temeram, foram além das suas circunstâncias, desafiaram a autoridade em casa e, às vezes, até fora dela. Outras tiveram sorte. Também é preciso encontrá-la, como à saída que nos volta a pôr na rota certa.

É difícil compreendermos alguém que se revela áspero, desagradável, hostil, permanentemente ácido. Às vezes, foi só um sonho adiado. Uma vida desencontrada.


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