China, Amílcar Cabral e o PAIGC: um namoro em três tempos

A China foi um dos primeiros países a apoiar o PAIGC. Mas as relações entre as partes esfriariam à medida que o conflito sino-soviético aqueceu, mostra-nos Julião Soares Sousa, biógrafo de Cabral.

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Delegação do MPLA e do PAIGC na China, em Agosto de 1960, a convite do Comité Chinês de Solidariedade com África e Ásia: à frente, Luciano Indau, Amílcar Cabral, Richard Turpin e Daouda Bangoura. Atrás, Eduardo dos Santos e Viriato da Cruz (MPLA) Associação Tchiweka de Documentação

O interesse da República Popular da China pelos movimentos africanos de libertação começou depois da Conferência de Bandung (1955). Os “inimigos principais” da China eram então os EUA, a URSS e Taiwan (Formosa) e o objetivo chinês era afastar África desses inimigos. Num futuro imediato, a aliança com o chamado “Terceiro Mundo” deveria resultar num inequívoco apoio à conquista de um assento para a China na ONU, no contexto da rivalidade direta com o regime de Chiang Kaichek, de Taiwan. Já no âmbito do diferendo sino-soviético, tratava-se de reivindicar um papel de primeiro plano, invocando a inépcia de Khrustchov, então líder soviético. Depois da Reunião dos Partidos Comunistas e Operários realizada em Moscovo em 1960, a ambição de Mao Tsetung foi chefiar a luta revolucionária anti-imperialista e o movimento comunista.

A aproximação da China a Amílcar Cabral e ao PAIGC começou em Maio de 1960 e experimentaria três importantes momentos: até 1967, as relações foram muito intensas e marcadas pelo apoio da China em armamento e treino dos guerrilheiros do PAIGC; num segundo momento, de 1967 a 1969, a China decidiu suspender unilateralmente a assistência ao PAIGC, durante pelo menos dois anos; e um terceiro momento, a partir de 1970, com a China a retomar gradualmente a ajuda ao PAIGC, mas sem o entusiasmo dos primeiros tempos.

Primeiros apoios

Em maio de 1960, Amílcar Cabral fixou-se em Conacri, onde no ano anterior havia sido estabelecida uma embaixada chinesa. Uma das suas primeiras ações (e do comité diretor do MPLA, igualmente sediado na capital da antiga colónia francesa) foi a realização de um tour pelas embaixadas acreditadas na capital da República da Guiné. O objetivo era pedir apoio financeiro, bolsas, assistência material e treino militar para os seus correligionários. As autoridades chinesas reagiram de imediato, convidando as delegações do MPLA e do PAIGC a visitarem a China.

O convite partiu do Comité Chinês para a Solidariedade Afro-Asiática, liderado à época por Liao Chengzhi, e do Instituto da Política Externa da China. A visita concretizar-se-ia nos inícios de agosto de 1960, tendo durado mais de um mês. A delegação do MPLA era composta por Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz e Eduardo dos Santos. O grupo do PAIGC, liderado por Cabral, integrava Richard Turpin (“Bobo”), Luciano Jacinto Ndau e Dauda Bangurá, tendo estes dois últimos permanecido no país durante quatro meses, recebendo treino de guerrilha e frequentando cursos de capacitação política e ideológica. No decurso da visita, Cabral negociou ainda a formação de 30 guerrilheiros do PAIGC. O segundo — e mais extenso — grupo de quadros do PAIGC partiria para a China em janeiro de 1961, regressando em maio. Era composto por dez elementos: Pedro Gomes Ramos, Constantino Teixeira, Francisco Mendes, João Bernardo Vieira (“Nino”), Manuel Saturnino da Costa, Hilário Gaspar Rodrigues, Osvaldo Vieira, Rui Demba Djassi, Vitorino Domingos da Costa e Domingos Ramos.

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Grupo de quadros do PAIGC recebidos por Mao Tse-Tung na China, em 1961. Da esquerda para a direita, João Bernardo Vieira ("Nino"), Francisco Mendes, Constantino Teixeira, Pedro Ramos, Manuel Saturnino, Domingos Ramos, Rui Djassi, Osvaldo Vieira, Vitorino Costa e Hilário Gomes Casa Comum/Fundação Mário Soares

Treinados na Academia Militar de Nanquim, estes dois primeiros grupos seriam distribuídos por todo o território da Guiné dita “portuguesa” (incluindo Bissau), a fim de desenvolverem as suas atividades pré-insurrecionais, recrutamento, mobilização de seguidores, distribuição de propaganda, ação direta e treino de novos aderentes. A China foi o primeiro país a treinar quadros de guerrilha do PAIGC, os quais seriam cruciais no lançamento da luta armada e integrariam (quase todos) o primeiro estado-maior do PAIGC. E vale ainda a pena salientar que várias dezenas de guerrilheiros do PAIGC seriam treinados por instrutores chineses em campos de treino criados em países africanos: na Argélia, de 1961 até à deposição de Ahmed Ben-Bella em 1965; no Gana, de 1961 até ao golpe que derrubou Nkrumah em 1966. O programa de treinos incorporava ainda, para além dos já mencionados cursos de capacitação política e ideológica, o ensino da História da Revolução Chinesa, a exibição de filmes revolucionários, lições sobre estratégica, engenharia militar, campo de tiro, tática, topografia, natação e o estudo do pensamento de Marx, Engels, Lenine, Mao Tsetung e Ho Chi Minh.

A aproximação da China aos movimentos de libertação deve ser associada à conturbada relação sino-soviética, que se deteriorara significativamente depois da II Conferência da Organização de Solidariedade dos Povos Afro-Asiáticos (OSPAA), realizada em abril de 1960, precisamente em Conacri. A China e a URSS divergiam quanto à luta armada e à coexistência pacífica, divergência que se arrastava desde as reuniões dos partidos comunistas e operários ocorridas em Moscovo (1957 e 1960), com a URSS a assumir uma retórica ambígua quanto à luta armada e ao apoio aos movimentos de libertação. A opção (diga-se difícil) pela luta armada por parte dos movimentos de libertação coincidia com a posição da China sobre a guerra revolucionária.

A estratégia e os métodos de aproximação da China ao PAIGC não se ficaram pelos exemplos acima anunciados. Uma vez instalados em Conacri, Cabral e outras figuras do seu partido tornaram-se convidados regulares nas receções organizadas pelo embaixador da China à época, Ke Hua, e nas frequentes visitas a Conacri das delegações da Associação de Amizade dos Povos da África. A relação entre a China e o PAIGC envolveu ainda circulação de panfletos, revistas e brochuras a favor dos movimentos de libertação; felicitações pelas datas históricas de relevância para ambas as partes; notas de imprensa com declarações em assuntos de política internacionais; a utilização da Rádio Pequim para transmissão de notícias sobre a guerra na Guiné (Bissau); o agradecimento público dos apoios.

A suspensão do apoio chinês

A relação com os movimentos de libertação mudaria a partir de 1963. À medida que foi desconfiando do eventual alinhamento de alguns desses movimentos com Moscovo, a China adotou uma postura mais seletiva. Nesse mesmo ano, deixou de apoiar o MPLA, depois da disputa de liderança entre Viriato da Cruz (pró-China) e Agostinho Neto, que a China considerava como sendo pró-soviético. O apoio foi canalizado para a União dos Povos de Angola/Frente Nacional de libertação de Angola.

Com o PAIGC, a deterioração das relações teria lugar apenas a partir de 1965, coincidindo com o momento em que Cabral passou a defender, insistentemente, uma solução negociada com Portugal. Na disputa contra o colonialismo e o imperialismo, a China não admitia nenhuma outra saída que não fosse a revolucionária. Nessa medida, aumentaria as suas pressões junto do PAIGC e de Cabral, condicionando cada vez mais a atribuição da ajuda à tomada de certas posições no âmbito do cisma sino-soviético e exigindo a condenação do “revisionismo” soviético.

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Amílcar Cabral com grupo de jovens combatentes que receberam treino militar na China Casa Comum/Fundação Mário Soares

Por sua vez, a assunção da neutralidade e independência por parte do PAIGC, sobretudo na Conferência Tricontinental de Havana em 1966, e a sua associação (tal como do MPLA e Frelimo) à URSS nas críticas à complacência da China relativamente à presença portuguesa e britânica em Macau e Hong Kong, respetivamente, seriam mal recebidas pelo regime de Pequim. Esta postura ambivalente da China não era amparada por nenhum dos movimentos de libertação acima referidos. Ainda assim, a China manteria a sua assistência em armamento (as melhores armas, nas palavras do próprio Cabral), minas terrestres, granadas e outros explosivos.

É de recordar que para Cabral, sem prejuízo da preservação (em teoria) de uma linha de pensamento e de ação independentes, os maiores aliados eram, indiscutivelmente, a URSS e a Guiné-Conacri. Nunca se cansou de o sublinhar. Do primeiro, provinha o grosso do apoio (militar e financeiro) para as atividades de guerrilha. No segundo estava instalado, desde maio de 1960, o quartel-general do PAIGC, o que em si mesmo já era um apoio inestimável.

O impasse político-militar que se verificava no conflito entre o PAIGC e o Exército português em 1968 tornou ainda mais imperiosa a necessidade de negociar. Esta possibilidade, que ficara em aberto desde 1960, transformou-se, a partir de 1965, numa quase obsessão. Cabral defendia que ninguém deveria ser condenado por querer negociar o fim de um conflito, porque a guerra, segundo ele, tinha objetivos políticos. Numa sessão em que participou em Londres (outubro de 1971), Cabral apoiou-se no exemplo das negociações entre os EUA com os vietnamitas em Paris para afirmar: “Qualquer pessoa com ideias revolucionárias que não entende que a nossa luta tem de incluir negociações não entende nada. Nós estamos sempre prontos para negociar.” Estas declarações eram uma crítica implícita a todos quantos (dentro e fora do seu partido) criticavam as suas propostas e vontade de acabar com a guerra por via negocial.

Para a China, a obsessão de Cabral em negociar com Portugal (solução que a URSS também patrocinava) representava uma traição aos seus ideais revolucionários. E assim o PAIGC passou a figurar na lista dos movimentos de libertação que a China incorporou na sua teoria geral do “inimigo principal”. Isto é: “Se és amigo do meu principal inimigo, meu inimigo és.” O descontentamento da China em relação à “neutralidade” do PAIGC estaria por detrás da suspensão do apoio em 1967, durante pelo menos dois anos.

Em fevereiro de 1968, Amílcar Cabral ainda visita a China, provavelmente numa tentativa de demover (sem sucesso) o primordial aliado da sua posição. O desapontamento face à atitude chinesa estaria por detrás, certamente, de alguns comentários menos favoráveis de Cabral em relação ao gigante asiático feitos numa reunião interna do PAIGC nesse mesmo ano. Acusaria a China de usar um “certo cerimonial” nas relações, o que não aconteceria com outros países socialistas, de exportar conflitos e até de fazer pressões políticas e ideológicas no âmbito do cisma sino-soviético como sucedera na Conferência dos Escritores Afro-Asiáticos de Pequim (1966). Na mesma altura em que suspendeu os apoios ao PAIGC, a China ensaiou contactos com o movimento rival — a Frente de Libertação para a Independência Nacional da Guiné (FLING Progressista), fundada em 1968 pelos irmãos Gomes Dias (Paulo e Maurício) e Rui Ramos.

Uma tímida reaproximação

A ajuda da China ao PAIGC só seria retomada timidamente em 1969, com o envio de algumas armas, arroz e caixas com livros de Mao Tsetung. Apesar disso, na Conferência de Solidariedade de Roma em 1970, no rol dos países que apoiavam os esforços do PAIGC pela libertação nacional, Amílcar Cabral referiu-se à URSS, à Argélia, à Guiné-Conacri, a Marrocos, a Cuba, entre outros, mas em nenhum momento fez menção à China.

Só depois da invasão da Guiné-Conacri pelas tropas portuguesas na Operação Mar Verde, em novembro de 1970, é que a China aumentou a sua ajuda, o que coincidiu com uma abordagem mais pragmática nas relações com o PAIGC, apostando na revisão dos métodos de atuação e das táticas. Ainda assim, embora e as relações tivessem entrado num processo de normalização com a visita de Cabral a Pequim, em julho de 1972, em busca de apoios para uma eventual proclamação do Estado da Guiné, a China não constaria do rol dos primeiros países a reconhecer a proclamação unilateral da independência feita pelo PAIGC, a 24 de setembro de 1973.

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Estagiárias do PAIGC na China Casa Comum/Fundação Mário Soares

Curiosamente, em outubro de 1973, o primeiro-ministro da China, Zhou Enlai, declarou durante a visita do seu homólogo australiano, Edward Gough Withlam, que Portugal ainda mantinha o controlo sobre as suas colónias. Esta declaração, no caso da Guiné, contrariava o relatório da Missão das Nações Unidas que visitou as zonas libertadas, em abril de 1972, e toda a propaganda do PAIGC sobre o controlo de grande parte do território da Guiné. Talvez essas declarações de Zhou Enlai tenham justificado o facto de só em março de 1974, semanas antes do colapso do regime fascista em Portugal, ter a China reconhecido a independência da Guiné-Bissau.


Referências:

– Our People Are Our Mountain. Amilcar Cabral on the Guinean Revolution, Committee for Freedom in Mozambique, Angola & Guinea, The Russel Press Ldt., 1972.

Julião Soares Sousa (2020), “Amilcar Cabral, the PAIGC and the Relations with China at the Time of the Sino-Soviet Split and of Anti-Colonialism. Discourses and Praxis”, The International History Review, 42:6, 1274-1296, DOI: 10.1080/07075332.2019.1695139.

Jeremy Friedman, Shadow Cold War: The Sino-Soviet Competition for the Third World (Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2015).


Julião Soares Sousa é investigador do CEISXX, Universidade de Coimbra, e é autor de Amílcar Cabral (1924-1973): Vida e Morte de Um Revolucionário Africano, uma biografia com três edições revistas, corrigidas e aumentadas

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