A escravatura transatlântica e o (anti)racismo

Ser negro transforma-se em sinónimo de escravo e escravo em sinónimo de negro não só em localizações específicas, mas numa escala global.

A escravatura é uma prática hedionda antiga e transversal a diferentes sociedades, mas cujas especificidades é importante discutir, quando debatemos o racismo e a resistência negra na contemporaneidade. Não é raro que se diga que a escravatura já estava fortemente implantada em África antes do tráfico transatlântico dos séculos XV a XIX e que, portanto, o impacto do último em pouco se distingue daquele produzido por outras formas de escravatura no continente. Querendo ou não, essa acaba por ser uma forma de, simultaneamente, minimizar as consequências do tráfico transatlântico nos dias de hoje e o papel dos portugueses no mesmo, e sobretudo, de despolitizar a escravatura.

De modo semelhante, aponta-se que figuras e processos históricos que são hoje mobilizados para dar visibilidade a uma genealogia da resistência negra à escravatura – como a figura de Njinga a Mbandi –, na verdade não teriam rompido com a escravatura e que a verdadeira resistência à escravatura teria sido o abolicionismo (protagonizado por brancos). Não são histórias lineares e isentas de contradições – nenhum processo histórico o é – e sabemos também que a história centrada nas “grandes figuras” não deixa de ter problemas (como, o de ocultar a história dos “debaixo”; o robustecimento de “mitos fundadores” nacionalistas; uma visão pessoalizada dos processos históricos). Mas não é raro na historiografia que se utilize uma “grande figura” para a partir dela explicar um contexto histórico, rompendo com a personalização e oferecendo informação sobre as relações de poder em presença. Por outro lado, reconhecer que essas figuras resistiram à escravatura dos seus povos pelos europeus, e isso não é de somenos, mas que não romperam totalmente com ela, nem com as formas de estratificação que estão na sua base, não retira legitimidade ao contributo que deram para a luta contra a escravatura. Aqui é preciso também perguntar se estaríamos perante o mesmo tipo de fenómeno político, económico e social que foi o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas e se aquele era feito nas mesmas condições de poder com que se fazia o último.

Interessa sistematizar alguns dos aspetos que distinguem o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas de outras formas de escravatura no continente africano. Numa prevaleceu o uso da mão-de-obra escravizada para trabalho doméstico, exploração sexual e demonstração de prestígio; noutra a forma de exploração predominante é o sistema de plantação, em que a força de trabalho é explorada numa lógica de “proto-industrialização” que daria origem ao capitalismo. Numa, a sujeição à condição de escravizado está mais associada a disputas entre grupos rivais, à conquista, a diferenças religiosas e étnico-culturais, enquanto noutra o que está em causa é a pertença racial. Ser negro transforma-se em sinónimo de escravo e escravo em sinónimo de negro não só em localizações específicas, mas numa escala global. Numa, existe um estatuto de inferioridade social e sujeição à violência extrema, mas a pessoa escravizada tende a ser considerada humana, socialmente inferior, mas humana; em outra, a legitimação da escravatura é feita através da institucionalização, também a uma escala global, de que as pessoas escravizadas, as pessoas negras, não são totalmente humanas, nem cultural, nem biologicamente. Reconhecer estas distinções significa dizer que existe escravatura “boa” e outra que é “má”? Claro que não. Significa reconhecer apenas que uma é mais estruturante das relações étnico-raciais e da antinegritude que vivemos hoje a nível global.

Portugal foi o país que mais pessoas negras traficou no Atlântico. Há quem diga que foi “apenas” um terço do total estimado de 12 milhões de pessoas arrancadas de África para serem escravizadas nas Américas entre os séculos XVI a XIX. Há quem, como eu, considere que Portugal foi responsável por cerca de 50% desse total. Em qualquer um dos casos, Portugal continua a ser a potência colonial que mais pessoas traficou no Atlântico. A diferença das estimativas deve-se a entendimentos (e não má-fé, distração, etc.) distintos sobre se o tráfico realizado para o Brasil depois da sua independência (1822) deve ou não ser contabilizado, como também – e aqui friso o também – português. O processo de independência política teve as suas contradições. Atenda-se desde logo ao facto de que o novo país seria não só governado por um português, mas pelo herdeiro ao trono de Portugal – D. Pedro. Não é o mesmo tipo de processo que ocorreu, por exemplo, no Haiti. Mas é preciso também não deixar de discutir a dimensão económica. Teriam as velhas famílias escravocratas portuguesas no Brasil, os circuitos de circulação e acumulação das suas fortunas e as suas redes de influência deixado, de um dia para o outro, de beneficiar Portugal?

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 75 comentários