Não são os exames que devem acabar, mas a doentia obsessão pela quantidade

Surpreende-me que a Confap nunca tenha analisado criticamente o facto de as provas de exame serem muito extensas, prejudicando o acto de pensar e a sua redacção.

A 14 de Março p.p., Dia da Matemática, a Antena 1 apresentou, pelo menos, nos noticiários das 8h e das 9h, através do presidente da Associação de Professores de Matemática, um problema para os ouvintes resolverem e cuja solução seria dada, pelo mesmo professor, uns minutos depois. Reparei na simplicidade da sua formulação, contendo os dados necessários para a resolução, e confesso que foi esse facto que me fez avançar para o presente artigo.

Por força das circunstâncias, acompanho crianças do 3.º e 4.º anos, uma das quais, a do 4.º, sofreu clamorosamente na sua aprendizagem com a crise provocada pela covid: encerramento de escolas e aulas por Internet (cerca de um ano). O Português e a Matemática, pelas suas características na exigência de treino, em trabalho diário, foram substancialmente atingidas, sabendo nós quão fulcrais são estes primeiros anos para o desenvolvimento integral dos alunos. Fez então o Ministério da Educação (ME) saber que a recuperação seria um dado adquirido, mas até hoje ainda não percebi o que foi feito para recuperar o que ficou adiado, durante o extenso período de covid, e afirmo-o na base da minha experiência que certamente não será única.

O que me foi e é dado ver contraria o ME, sendo ainda de acentuar a extensão dos programas (Estudo do Meio e Matemática, por exemplo), como se os alunos fossem baús que se enchem de informação, muitas vezes não adequada à sua idade. Surpreendentemente, cumprem-se programas demasiado longos, havendo matéria atrasada que não foi devidamente trabalhada. O registo de um conteúdo num sumário não significa que ele tenha sido apreendido e treinado em trabalhos de casa pelos alunos, e lembro a etimologia do verbo «aprender»: do latim ad+prehendere = ligar, agarrar a si.

Também o tempo usado em actividades extracurriculares, das quais, e dado o problema existente, se deveria ter abdicado, ou pelo menos aligeirado, acabou, e acaba, por lesar a recuperação pretendida; no mesmo sentido, a continuidade da rubrica “trabalho autónomo”, cujo objectivo plural preconiza tornar o aluno empreendedor, responsável pela sua aprendizagem e pela sua avaliação, contínuos absurdos que grassam infelizmente na escola, transformando a pretensa pedagogia em tortura e estigmatização.

Explicaram-me que este “trabalho” acontece quando, terminado o que se faz em aula, o aluno se dedica a outra tarefa, elaborando uma ficha ou lendo um livro, o que será auto-avaliado, contando para a avaliação final. Quem, por inúmeras razões, como dificuldades na aprendizagem, não “empreender”, sofrerá as consequências. O que acontecerá a uma criança que se auto-avalia negativamente, gesto que pode vir a repetir-se várias vezes, senão a desmotivação para o estudo ou a indisciplina? Se tivermos em conta que muitos são os alunos que não encontram em casa quem os acompanhe nos estudos, amontoando dúvidas, e que outros sofrerão de excesso de tempo na escola, das 8h às 19h, não contando com o apoio de um professor, durante parte desse tempo, que os possa apoiar na realização de TPC, quando existem, como falar neste famigerado “trabalho autónomo” ou numa aprendizagem real? Acresce ainda o número de alunos por turma que tantas vezes dificulta o apoio aos que apresentam mais dificuldades.

Exemplificando o que anteriormente referi sobre as iniciativas extra-curriculares, escolho uma, intitulada “A Comunidade”, promovida pela JA Portugal (2005), congénere da Junior Achievement (criada em 1919, EUA), cujos objectivos transcrevo: “desenvolver e promover o empreendedorismo, o gosto pelo risco, a criatividade e a inovação das próximas gerações”, ao longo de cinco actividades. Os parceiros são vários: bancos, associação portuguesa de seguradores, universidades, escritórios de advogados, Cofidis… Não me foco nos objectivos, limitando-me a sublinhar que o prioritário deveria assentar na recuperação do que ficou atrasado, permitindo que os alunos aprendessem e dominassem minimamente matérias que serão elementares no prosseguimento da escolaridade obrigatória, e que “postas em dia” afastarão o insucesso e a desmotivação.

É consensual que durante a covid se acentuou o défice na prática da Matemática, com destaque para a “resolução de problemas,” o que significa que alunos, agora no 4.º ano, falharam essa prática que continua a não existir, e afirmo-o com conhecimento de causa. Regresso, pois, ao início do texto, dando um exemplo, incluído num manual de problemas, do 4.º ano: O Rui, o André, a Sara e a Jéssica resolveram comprar uma prenda para oferecer à Matilde no dia do seu aniversário.

- O Rui contribuiu com 9,40 euros,

- O André comparticipou com o dobro,

- A Sara colaborou com 6 moedas, num total de 9 euros, sendo que 4 das moedas eram de 2 euros cada.

- A Jéssica deu todas as suas 11 moedas, que eram de 2 euros, de 1 euro, de 50 cêntimos, de 10 cêntimos.

- O presente custou 43,30 euros.

. Qual o valor das outras duas moedas da Sara?

. Com quanto participou a Jéssica? Preenche o quadro, indicando a quantidade de moedas que a Jéssica tinha de cada tipo e o respetivo valor.

A resolução de problemas exige um trabalho aturado, indo do mais simples para o mais complexo, como acontece em qualquer aprendizagem. Impor o complicado a quem não domina o mais simples é, para além de antipedagógico, uma crueldade. Realço que um aluno do 5.º ano se baralhou com o problema, acontecendo o mesmo com um do 8.º. A esta situação acresce o facto de muitos alunos fazerem ainda uma leitura soletrada, no 4.º ano, e não só, pelo que verifiquei, o que, naturalmente, dificultará a compreensão do que lêem.

Surpreende-me que a Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap) manifeste preocupação com as greves dos professores e a sua repercussão na aprendizagem, mas não levante a voz sobre o que está a ser feito para a recuperação da matéria não leccionada em tempo covid e cujas nefastas consequências são reconhecidas. Que não se preocupe com a aprendizagem de milhares de alunos que terminaram o 2.º período, sem professor atribuído a uma disciplina. Por último, defendendo a Confap “o direito à felicidade na escola” e não valorizando os exames, adepta do culto da facilidade, surpreende-me ainda que nunca tenha analisado criticamente o facto de as provas de exame serem muito extensas, prejudicando o acto de pensar e a sua redacção, o que é tanto mais grave quanto se evidencia o mesmo mal em provas do 1.º ciclo

Não são os exames que devem acabar, mas sim esta doentia obsessão pela quantidade (provas de 6 e 7 páginas), bem como o desprezo pelo acto de pensar que requer forçosamente tempo: para ler, interpretar ou escrever. Na verdade, exige-se mais seriedade e empenho, e dirijo-me igualmente aos encarregados de educação, alguns dos quais se regozijam, irresponsavelmente, com a ausência de TPC, ousando outros admoestar os professores que o fazem. Não perceberão que é o futuro dos seus filhos que está em jogo?

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