O mais importante da comunicação é ouvir o que não está a ser dito

A aceitação da diferença é bonita de dizer, mas difícil de interiorizar e ainda mais de praticar.

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Há tantas crianças quantas a nossa imaginação conseguir alcançar. Viva a diversidade! Lukas/pexels

“Camélia branca na mão, Rosalina sorria. Sorriso nos olhos dourados igual a uma pétala branca a voar.” Assim começava o primeiro livro que tenho memória de ler, nas férias da Páscoa da primeira classe. Aprender a ler será, porventura, a competência académica mais importante que fazemos na vida, pelas implicações que tem nas restantes aprendizagens.

A pressão para o sucesso académico das crianças e o que serão “quando forem grandes” surge cada vez mais precocemente e, com ela, instiga-se o espírito de competição que, quando em excesso, é importante cada qual refrear, sob pena de fazermos perigar a aprendizagem de valores essenciais como a coesão social e o bem comum. Precisamos muito de educar as crianças para a construção de uma sociedade na qual a condenação a queimaduras de segundo e terceiro graus no barbecue do Purgatório, não seja valorizada e aplaudida. Uma sociedade onde cuidar gentilmente uns dos outros não seja visto como uma fragilidade, mas como uma resistência.

O psicólogo Carl Rogers referia que “as pessoas são tão maravilhosas quanto o pôr do sol, se as deixarmos ser”. Quando olhamos para um pôr do sol, não dizemos que ele deve ter um laranja mais suave no canto direito. Não o tentamos controlar. “Assistimos sim deslumbrados, enquanto ele se revela.” Embora com conta, peso e medida, assim devemos fazer também com as crianças.

Nascemos, crescemos e envelhecemos com virtudes e defeitos. É uma singularidade do ser humano. Nenhum de nós tem, em todos os momentos, nervos inoxidáveis, à prova de bala e as crianças não são exceção. A aceitação da diferença é bonita de dizer, mas difícil de interiorizar e ainda mais de praticar. Talvez por isso os momentos de rara sintonia, quando nos sentimos compreendidos por alguém, funcionem como um verdadeiro bálsamo, desde tenra idade.

Nos dias que correm, as crianças são sujeitas a horários cada vez mais exigentes, espartilhados e controlados pelos adultos, restando pouco tempo para brincar e serem aquilo que são ainda: crianças. Algumas rezingonas, mas de confiança; outras de coração generoso; há as hiperativas e talentosas; as humildes e gentis; as de espírito livre, mas comprometidas; as acolhedoras e de bom trato. Tantas quantas a nossa imaginação conseguir alcançar. Viva a diversidade!

“Não mudamos com a idade na estrutura do que somos. Apenas, como na música, somo-lo noutro tom”, como diria Virgílio Ferreira. Talvez por isso, o melhor que podemos fazer por elas é deixá-las ser crianças, enquanto o são. Com as suas idiossincrasias, aproveitando o melhor de si. Sem julgarmos, nem projetarmos tanto o seu futuro, como forma de reduzir a ansiedade dos adultos que as acompanham. É confiar mais e acreditar que irão conseguir fazer o seu caminho, como até aqui, mesmo que nem sempre exatamente como gostaríamos.

Nem sempre as crianças partilham o seu mal-estar. A tristeza, tal como a alegria, por vezes também se engana nos sítios que frequenta. A coisa mais importante da comunicação é ouvir o que não está a ser dito. As palavras caladas e os silêncios gritantes. Mas, interpretar os silêncios é uma tarefa herculeana, é certo. E não é uma tarefa menos exigente também no mundo dos adultos. Metade das nossas histórias é feita de ambivalências, medos e incertezas e a outra metade de cumplicidade, compromisso e dedicação. Mas, se sonhamos, projetamos e construímos é porque acreditamos e acreditar é a mais verdadeira das realidades. Aldous Huxley falaria a propósito da realidade e da ficção que “o problema da ficção é que ela faz muito sentido. A realidade nunca faz sentido”.

Há um provérbio africano que diz que “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”, dada a incomensurabilidade da tarefa. Não somos muitos para esta nobre missão. Precisamos de todas as pessoas, porque os sonhos são sempre elevados quando apontamos às estrelas e o que há para fazer para os alcançar também. Talvez assim, aos poucos, o entendimento chegue, os sentimentos se ajeitem e a paz e tranquilidade se instalem na vida de miúdos e graúdos.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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