Sem metadados é impossível evitar certos crimes, avisam polícias europeias

Declaração conjunta apela à criação de um novo enquadramento jurídico “que restabeleça a confiança entre os órgãos de polícia, o sector privado e os cidadãos”.

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Saber onde esteve um suspeito, que contactos fez, que sites visitou - eis o que os metadados podem revelar Marco Duarte

Representantes de duas dezenas de polícias europeias assinaram uma declaração conjunta manifestando a sua preocupação por causa das restrições à utilização de metadados impostas às autoridades em vários países, na sequência de uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia.

“Alguns tipos de crimes só podem ser evitados e investigados caso seja permitida a conservação de dados” de tráfego das telecomunicações, avisam os dirigentes das polícias, alertando para o impacto destas restrições nos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e, consequentemente, no Estado de direito democrático. Em causa, dizem, está a necessidade de equilibrar os diferentes direitos fundamentais em disputa nesta equação: por um lado o direito à privacidade, por outro à segurança. Mas não só.

“A dignidade humana, valor basilar da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, requer uma reflexão profunda face a um equilíbrio significativo e adequado entre os direitos fundamentais”, refere também a mesma declaração. Na qual é recordado que depois de ter considerado, em 2014, que a conservação generalizada e indiscriminada de dados de tráfego de telecomunicações por longos períodos de tempo é incompatível com o direito da União, o Tribunal de Justiça veio mais recentemente confirmar este seu entendimento da questão, mesmo quando está em causa o combate à criminalidade grave.

Fê-lo em Abril de 2022, no caso de um assassino condenado pela justiça irlandesa que contestou a utilização de provas sob a forma dos seus dados de tráfego e de localização, dando-lhe razão. Meio ano depois, voltaria a fazê-lo, desta vez decretando que a legislação alemã sobre a conservação de dados se revelava igualmente incompatível com o direito da União.

Em Portugal, desde que o Tribunal Constitucional anulou as disposições legais que permitiam a recolha alargada de metadados para fins de investigação criminal, há perto de um ano, já foram destruídas dezenas de casos de pornografia infantil, tanto durante a investigação como na fase de julgamento, devido à utilização de prova proibida pelas autoridades.

A sentença do caso do roubo de Tancos foi recentemente mandada refazer por um tribunal de segunda instância por forma a ser expurgada de meios de prova assentes em metadados dos arguidos – o que pode significar a redução das penas de alguns deles, ou no limite a sua absolvição. Antes disso, soube-se que o Ministério Público tinha demorado cinco meses até conseguir a autorização judicial para solicitar à operadora a localização celular das comunicações de uma adolescente que desapareceu em Maio de 2022 na região de Leiria. Na altura, as autoridades e os próprios pais ignoravam que não se tratava de um caso de vida ou morte.

Também no caso de Jessica, a menina espancada até à morte em Setúbal, o juiz de instrução demorou cinco meses a autorizar os investigadores a aceder aos dados do telemóvel da vidente suspeita de ter ajudado a torturar a criança.

A nível europeu, recordam os dirigentes policiais que estiveram reunidos em Lisboa na semana passada por iniciativa da Polícia Judiciária, o caso torna-se particularmente bicudo por não ter sido feita nenhuma harmonização legislativa, subsistindo assim regimes legais muito diferenciados: “Na ausência de segurança jurídica dos quadros jurídicos nacionais em matéria de conservação de dados, existe o risco de os órgãos de polícia não conseguirem aceder a provas importantes necessárias para identificar, prevenir, investigar e reprimir crimes.” Em especial quando se trata de delitos cometidos em vários países, em que as polícias se deparam com procedimentos e períodos de conservação dos dados diferentes.

Oferecendo o seu contributo para encontrar soluções que possam resolver o imbróglio, as polícias europeias reunidas em Lisboa apelam à criação de “um novo enquadramento jurídico que restabeleça a confiança entre os órgãos de polícia, o sector privado [as operadoras de telecomunicações] e os cidadãos”.

“Estamos particularmente preocupados com o impacto, a nível nacional e internacional, da ausência de um regime de conservação de dados da União Europeia”, pode ainda ler-se neste documento conjunto, uma vez que essa lacuna afecta “não só o cumprimento das missões policiais, mas toda a sociedade”.

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