“Os comunistas” levaram o campo da minha infância. E depois?

Cace o devoluto, senhor primeiro-ministro. As pessoas que não têm onde morar porque não conseguem pagar as rendas na Grande Lisboa vão ficar satisfeitas com o Governo

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A minha infância teve um campo no Minho. Por alguma razão – penso que métrica – o meu avô insistia que não era uma quinta, mas um “campo”. Tínhamos um campo onde havia um corredor coberto de videiras, que só acabava num tanque de rega que ficava lá muito longe, tão longe que não se ouvia chamar para o jantar.

Para chegar ao campo atravessava-se o quintal – ao fundo uma horta, um regato onde vi lavar roupa, árvores das camélias, ameixoeira e a laranjeira da minha vida. Depois de uma portinhola, à esquerda era o poço e à direita o campo de milho. Se se quisesse ir para o sítio dos porcos e dos coelhos, atravessava-se mais um portão a seguir ao poço. Ao lado da casa dos porcos e dos coelhos ficavam as “cocheiras”, que sempre tiveram esse nome, apesar de, no tempo da minha vida, já só albergarem carros. E um piano velho.

O campo era imenso. A tia Lula comia as maçãs que ia tirando da árvore quando vinha connosco, não tinham “produtos”. Só a vinha era “sulfatada” — não nos podíamos aproximar do tanque do sulfato nem do poço quando estava aberto. Brincar no meio do milho, quando as folhas têm o dobro da nossa altura, era um privilégio difícil de explicar nos lugares onde não se cultivava milho.

Um dia, o campo acabou. Não foi aí que acabou a minha juventude (foi uns anos depois), mas o choque foi bruto. O que é que se passou? O Estado (a Câmara de Viana do Castelo) queria construir um pavilhão gimnodesportivo no nosso “campo” e o terreno iria ser expropriado. O valor monetário, lembro-me de ouvir na altura, era mais ou menos ridículo. O valor sentimental não tinha nome.

Havia aqui para o Estado um conflito: o direito ao desporto de uma comunidade já razoável e o direito à propriedade dos meus avós (e direito ao gozo dos descendentes e “in-laws”, éramos uns 20). O “campo” ficava na cidade. Era num dos extremos, mas era cidade. O meu avô lá fez o acordo com o Estado.

Sim, ainda tínhamos o jardim, a árvore das camélias e a minha laranjeira. E as cocheiras, claro. Ainda lá está tudo e a casa onde nasci. Não está o campo. Quando começou a crescer o mono do pavilhão gimnodesportivo, era odioso olhar para aquilo.

Quando Carlos Moedas vem este sábado fazer um manifesto em defesa da propriedade privada, dá-me vontade de rir, porque me lembro do “meu” campo e de tantos campos por esse país fora que foram expropriados em nome de bens maiores como auto-estradas, estradas, centros de saúde, hospitais, escolas, pavilhões gimnodesportivos. A habitação acessível também deveria estar contemplada no “interesse público” subjacente ao direito à expropriação.

Quem ouvir o discurso do PSD por estes dias – como assinalou aqui Manuel Carvalho – parece que está a ouvir os velhos latifundiários a manifestarem-se contra ocupações. Só que não há ocupações de espécie alguma, nem expropriações de casas, e até Costa faz questão de vir dizer que não vai “desencadear a caça ao devoluto”. Por acaso até era bom que andasse, a começar pelos prédios devolutos do Estado que deviam estar a servir o interesse público há muito tempo. Cace o devoluto, senhor primeiro-ministro. As pessoas que não têm onde morar – e são muitas, mesmo com salários acima da médiaporque não conseguem pagar as rendas estratosféricas da Grande Lisboa vão ficar satisfeitas com o Governo.

A verdade é que cada vez que a direita acusa António Costa de ser comunista faz-lhe um favor imenso. O próprio já mostrou o gozo que isso lhe dá quando, no recente debate parlamentar, ironizou que o seu pai comunista “ficaria orgulhoso do filho”. Não há nada de comunista num pacote da habitação que até financia os especuladores, subsidiando as rendas especulativas.

É verdade que durante sete anos o Governo não fez nada de substancial para que a situação da habitação em Lisboa se revertesse. Antes pelo contrário. Permitiu a “turistificação” total em certas zonas da cidade, que teve lados positivos como a recuperação de uma boa parte do edificado que estava a cair aos bocados e a criação de empregos, mas que fez disparar os preços das casas. Agora está a fazer qualquer coisinha, mas está longe daquilo que se podia e devia encarar: se a expropriação é aceite para fazer estradas e pavilhões gimnodesportivos, porque não o é para criar habitação acessível? Quando me “tiraram” o campo da minha infância, ninguém teve dúvidas sobre a justiça social que estava subjacente à decisão. O problema é que, no ano de 2023, as duas palavrinhas são “comunistas”.

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