Rui Martins e o Culto ao Bacalhau (seco e salgado) no Porto

Nasceu no Mercado do Bolhão um espaço exclusivamente dedicado à cozinha de bacalhau. Mínimo de 24 meses de cura, demolha e receitas com tradição. Até nas sobremesas reina o fiel amigo.

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Rui Martins: Culto ao Bacalhau vai ser um espaço exclusivamente dedicado à cozinha de bacalhau Nelson Garrido

Rui é um cozinheiro da nova geração. Com conhecimento abrangente, domínio das técnicas e conceitos e currículo alargado. Daqueles a quem agora chamam chefs. Foi até, em 2016, premiado com o título de Cozinheiro do Ano, mas o que verdadeiramente o motiva é mesmo a cozinha com raízes na memória e tradição, com base no produto.

“O que me apaixona é a cozinha tradicional, da nossa memória. É o que faz sentido para quem estamos a cozinhar”, reflecte, constatando que boa parte do que hoje se procura é mais pelo estilo, a estética, que propriamente a essência culinária. E com isso perde-se também o foco no produto, nas suas características e genuinidade.

E como memória e saudade andam sempre de mãos dadas, foi durante o sossego do recolhimento pandémico que deu consigo a pensar nestas coisas. Assaltaram-no as memórias das postas de bacalhau a demolhar em água corrente, os bolinhos com salsa e cebola, o aroma quente do cozido com molho fervido, as lascas dos assados da avó ou as copiosas postas à Zé do Pipo da pensão onde teve o primeiro emprego.

E com elas o sobressalto cartesiano, a dúvida crescente: onde é que hoje posso saborear um bom bacalhau? E essas receitas de que já poucos têm memória? “O grande perigo é que já não são só as receitas que caíram no esquecimento, é também a qualidade do produto. O bacalhau da nossa tradição sempre foi seco e salgado. Hoje, 60 a 70% do que se consome já é ultracongelado, sem cura e com dupla congelação. Chega congelado, depois é salgado e demolhado e sofre nova congelação com vidragem, é permitido até 30% de vidragem. Isto não é o nosso bacalhau, o bacalhau a sério é seco e salgado, tem que ter um pico de sal, gelatina e untuosidade. É preciso manter a memória e a técnica, o culto pelo bacalhau da tradição.”

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Rui Martins, chef do Culto ao Bacalhau nelson garrido

É dessa saudade, dessas dúvidas e sobressalto, que nasce o Culto ao Bacalhau, um espaço exclusivamente dedicado à cozinha de bacalhau que por estes dias abre portas no renovado Mercado do Bolhão, no Porto.

Rui Martins é o responsável pela direcção gastronómica do grupo Prumo, as cozinhas do restaurante O Paparico e das cervejarias Brasão. Uma equipa com vários projectos e perto de uma centena de cozinheiros, para os quais desenvolve o conceito gastronómico e selecciona os respectivos produtos. O bacalhau é o primeiro do novo caminho de restaurantes de culto (que se abrirão também ao Mar, à Carne e ao Petisco).

Além das técnicas e receitas tradicionais, foi também atrás dos produtos. “O bacalhau é da Islândia, não só porque tem boa gordura mas porque tem também uma técnica de corte que mantém o cabeço completo. O corte da cabeça contorna todo o músculo do cachaço, que é onde se concentra a melhor gordura, o bacalhau grelhado vai ser sempre do cabeço”, avança.

O cozinheiro explica ainda que são peças inteiras com pelo menos cinco quilos e 24 meses de cura. “Estabelecemos uma parceria de fornecimento com a empresa Lugrade, mas somos nós que fazemos toda a preparação.” Para isso foi criada uma sala específica e certificada para os processos de desmancha e demolha. Três tanques com cerca de 300 litros e um sistema que controla os ciclos de renovação e mudança de águas.

Além dos peixes, também línguas, bochechas, caras, ovas e sames, tendo seleccionado igualmente um azeite e vinagre específicos. “O azeite é de Trás-os-Montes, da Casa Santo Amaro, com boa gordura, verde e maçã. Fizemos uma prova cega, éramos seis e foi a escolha de cinco. O vinagre, de vinho tinto, foi feito por Luís Pato, mas criamos também um picante com vários tipos de malaguetas, fumados e sucos de bacalhau.”

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Rui Matins e o Culto do Bacalhau nelsong garrido

Rui Martins frisa que, a par da cura e preparação, também todos os outros produtos são determinantes na tradição culinária do bacalhau. “É fundamental o azeite, cebola, louro, alho e até a acidez do tomate e um pouco de vinho branco para refrescar. Esta é a base da cozinha tradicional. Por isso seleccionámos fornecedores para cebolas doces e ovos de poedeiras, não se consegue fazer um bom bolinho de bacalhau com ovos de aviário.”

É que, apesar das muitas andanças, conhecimento e experiência acumuladas, são sempre os sabores da tradição que lhe marcam o gosto. Foi, afinal, um caldo e um prato de bacalhau que lhe deram o título de Cozinheiro do Ano, e até o forno do Culto ao Bacalhau – em tijolo e montado no lugar – foi concebido com a ideia nos assados da infância minhota.

E o menu não deixa lugar para dúvidas: dez entradas e nove pratos, tudo exclusivamente dedicado ao receituário com bacalhau. Até nas sobremesas há um mil folhas de bacalhau com ovos-moles e um bolo merengado de bacalhau. Tudo em prol da manutenção do fervor pelo nosso bacalhau seco e salgado.

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