Agredir e matar não representam a doença mental

Não podemos associar a doença mental à agressividade e ao crime. Esta associação resulta num bom exemplo para a intolerância face ao sofrimento psicológico.

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"No caso da coexistência de doença mental e crime, os fatores sociodemogra´ficos, emocionais e econo´micos podem ter relevo" @petercalheiros

Fomos confrontados com a tragédia no Centro Ismaili de Lisboa: um homem matou duas mulheres. Suspeita-se de que o autor dos crimes teve um surto psicótico, mas ainda falta a confirmação da perícia psiquiátrica.

Nada do que se possa dizer serve de consolo às famílias das vítimas, nem retira a carga do crime. Porém, de igual modo, não podemos associar a doença mental à agressividade e ao crime. Esta associação resulta num bom exemplo para a intolerância face ao sofrimento psicológico, dado que afirmar que as pessoas que apresentam algum problema psicológico são à partida um perigo para a nossa segurança é errado e perigoso, podendo resultar em alarme social.

O sofrimento diário sentido por quem vive com problemas de saúde mental deve ser respeitado, inclusive, qualquer pessoa pode vir a ter uma doença mental e isso não é vergonha ou fraqueza.

Mas o que é um surto psicótico? Trata-se de um episódio temporário e dissociativo da realidade caracterizado por alucinações (por exemplo, ver algo que não existe), delírios (crenças erradas, por exemplo de que alguém está a persegui-lo ou quer fazer-lhe mal), confusão emocional, discurso e comportamento desorganizado e incoerente. Dada esta apresentação complexa, é comum associar o surto à violência, mas esta não é uma característica das pessoas que têm surtos psicóticos.

Há fatores temperamentais que aumentam a probabilidade de uma pessoa desenvolver um quadro psicótico (traços e perturbações da personalidade pré-existentes), porém, qualquer pessoa pode ter um episódio, independentemente desses factores, mas relacionado com experiências maracadas por muito stress, traumáticas, intensas e drásticas. Naturalmente, o risco aumenta na presença de consumo de drogas psicoativas.

Perpetrar um crime não está diretamente relacionado com a doença mental e, quando acontece, faz parte de uma minoria, que acaba por ser estigmatizada tornando-se mais susceptível à rejeição e a violência.

No caso da coexistência de doença mental e crime, os fatores sociodemográficos, emocionais e económicos podem ter relevo. Outros aspectos também contribuem, como a possibilidade de que no momento em que o sujeito cometeu o ilícito a sua doença estivesse avançada, a ausência de uma rede de suporte relacional, bem como a falta de acompanhamento psicológico e psiquiátrico e do cumprimento do tratamento, dificultando ou até impedindo o seu bem-estar.

O suporte social e uma ocupação de lazer e profissional são fatores protetores de modo a que a pessoa mantenha o tratamento e evite recaídas. Com o apoio da medicação adequada, os doentes com patologias mais graves podem ser funcionais, sobretudo, quando a doença é identificada precocemente, possibilitando o início do devido tratamento.

Assim, há que romper com os comentários insultuosos ligados aos problemas psicológicos e à sua estigmatização, tais como, “aquela pessoa só pode ser bipolar, está sempre a mudar de opinião!” ou “deve ser esquizofrénica!”.

A transmissão errada à população do que é a doença mental gera medo e uma sensação de perigo sobre quem padece, e não corresponde à realidade.

A saúde mental continua a ter pouco financiamento do Estado, sendo necessária mais prevenção e literacia nesta área, começando por intervenções junto da população em geral e da profissional, de modo a quebrar estigmas e aumentar a possibilidade de as pessoas que precisam receberem tratamento e integrarem-se na sociedade.

Por outro lado, as pessoas que padecem de um problema psicológico precisam de intervenção psicossocial e melhores serviços de saúde para prevenir estados activos da doença, que representem risco.

A articulação com a família e com o meio social dos doentes contribui muito para a sua reabilitação, visa reintegrar socialmente os doentes e ajudar a recuperar funcionalidade ocupacional. Uma doença crónica precisa de tratamento, e isto aplica-se tanto na saúde física como psicológica, sem vergonhas ou tabus.

Na presença de uma pessoa que está a agir de forma diferente do habitual, com comportamentos que a coloquem em risco ou aos outros, importa acalmar e ligar para o 112.

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