Ópera e território

É de difícil compreensão que a ópera e o seu único teatro em Portugal permaneçam tão insulares na sua dedicação ao prestígio social, sem relação efetiva com o território.

Será uma oportunidade perdida olhar para o primeiro concurso de direção artística do nosso único teatro de ópera sem debatermos o que devia ser a sua missão de serviço público e a relação que deve ter com a Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses.

José Sasportes apontou em artigo recente neste jornal (“Precisa-se director artístico de preferência de saldo”, publicado no passado dia 13), para as fragilidades do concurso para a próxima direção artística do Teatro Nacional de São Carlos (TNSC). Algumas críticas são relevantes, como a indefinição sobre o espaço de residência do Coro e da Orquestra Sinfónica Portuguesa (OSP), e a programação num teatro encerrado para obras. Julgo que a solução passa pela relação do TNSC com o território.

O país tem uma nova ferramenta de políticas públicas de cultura: a Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses (RTCP). Com o primeiro concurso para financiamento dos teatros e espaços credenciados para abrir em julho, as estruturas estarão em pleno funcionamento em 2024. Sendo a única estrutura do país especializada em ópera, o TNSC pode adotar uma estratégia de parceria com a Rede, através de produções de menor dimensão, adotando o modelo de estúdio de criação e encenação já experimentado com sucesso no passado (nomeadamente no Programa Gulbenkian Criatividade e Criação Artística, 2004-08).

Um teatro de ópera que constrói políticas públicas trabalha necessariamente três problemas: um problema artístico – a abertura clássica da ópera ao cruzamento interdisciplinar cristalizou em Portugal numa forma datada que importa atualizar em confronto com o pensamento de outras áreas artísticas (a começar pela forma institucional que assume através do teatro, como reificação de política de Estado ao invés de espaço artístico de participação cultural); um problema económico – sendo o único teatro público dedicado a uma prática que exige capital intensivo sem ganhos de produtividade, é esta instituição que garante a concentração necessária de profissionais para expandir a sua ação técnica e artística; e um problema político – a sua existência só ganhará sustentabilidade social se servir o território e garantir, através da Rede de Teatros e Cineteatros, o acesso à programação e, também, à criação.

Com o teatro em obras, coro e orquestra sem espaço de residência, uma programação sustentável para o biénio 2024/25 terá uma maior viabilidade se a instituição partir para o território, num trabalho de políticas públicas, através de protocolo com os teatros que integram a rede, financiando a criação sustentada de produções de ópera de menor dimensão também fora de Lisboa, a par de uma autonomização do Coro e da Orquestra Sinfónica Portuguesa para o trabalho no seu repertório respetivo. Este período flexível serviria de preparação para a reabertura do Teatro Nacional de São Carlos, já com uma programação dedicada e consistente para 2026/27.

O Centro Cultural de Belém deveria ser o lugar de residência do Coro e da OSP, tendo espaço para ensaio e concerto de diferentes formações. Não colhe o argumento de que a estrutura foi pensada para ser livre de compromissos, como se um paraíso de programação fizesse sentido e como se a programação da casa alguma vez tivesse sido incompatível com formações residentes. Sendo ambas estruturas públicas, financiadas diretamente pelo Orçamento do Estado, nada impede que se aproveite este momento para estabilizar ambas as formações num espaço que permite desenvolver repertório em múltiplas direções.

Seria desejável uma ideia de teatro que constrói políticas públicas, com as consequências que isso tem na orientação artística. É de difícil compreensão que, após um século de sucessiva desconstrução estética, social e política, num trabalho que deslocou a obra do objeto para o processo, e a figura do criador e do objeto para a experiência do observador, a ópera e o seu único teatro em Portugal permaneçam tão insulares na sua dedicação ao prestígio social, sem relação efetiva com o território que poderia servir ou com a produção de conhecimento artístico contemporâneo. Que permaneça dedicada à musealização artística ao invés de abrir o processo à participação. Que não pense a contemporaneidade. E, para isso, não precisamos apenas de um diretor mas sim de um programa e orientação artística que trabalhe o território.

O autor escreve segundo o Novo Acordo Ortográfico

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