A longa caminhada dos Depeche Mode, (ainda mais) entre a luz e as sombras

Primeiro álbum em seis anos, primeiro desde a morte de Andrew Fletcher, Memento Mori são os Depeche Mode a reencontrarem-se na essencialidade do seu som.

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A Memento Mori Tour dos Depeche Mode começou no dia 23 em Sacramento, EUA Frazer Harrison/Getty Images

“Acima de tudo continuamos a querer divertir-nos e a desejar novos desafios”, dizia Andrew Fletcher em 2013, quando do lançamento de Delta Machine, o 13.º álbum da carreira dos Depeche Mode. O álbum que se seguiu, Spirit, não foi certamente motivado pelo desejo de diversão — musicalmente seguia os caminhos habituais, mas, naquilo que nos diziam as vozes de David Gahan e Martin Gore, encontrávamos a mais política colecção de canções da banda, crítica e pessimista das andanças do mundo, trumpismo e “Brexit” a fazerem disparar campainhas.

Memento Mori, seis anos depois, é ainda menos um álbum de diversão, mas foi certamente um desafio. Porque começou a ser criado durante o período pandémico, com as canções a ganharem o tom de uma reflexão sobre a mortalidade. Porque tais reflexões ganharam um simbolismo maior, mais próximo e mais profundo, quando, em Maio do ano passado, o teclista Andrew Fletcher, a cola que mantinha a banda unida há quatro décadas, foi levado subitamente, aos 60 anos, por um ataque cardíaco fulminante. Memento Mori não foi escrito para ele, mas é um álbum atravessado pela sua presença.

Produzido, como o anterior, por James Ford (Arctic Monkeys, Florence + The Machine, Gorillaz), desta vez com a companhia da italiana Marta Salogni (Björk, M.I.A.), revelando um novo parceiro de composição para Dave Gahan, Richard Butler, vocalista dos Psychedelic Furs (compuseram juntos quatro canções), Memento Mori mostra uns Depeche Mode a reencontrarem-se na essencialidade do seu som, despojados e directos, naquele jogo de luzes e sombra que tornaram imagem de marca, assinalando até um olhar retrospectivo na forma como duas das novas canções rimam com o seu passado — Never let me go a apontar para Never let me down, incluída em 1987 em Music For The Masses; People are good a levar-nos até People are people, single extraído de Some Great Reward, álbum de 1984.

People are good, batida kraftwerkiana transportada para hangar subterrâneo, linha minimal de sintetizador a desenhar a melodia, tem a voz grave de Gahan, naquele tom clássico de Scott Walker caído em tormenta blues, a cantar os seguintes versos: “Keep reminding myself/ that people are good/ and when they do bad things/ they’re just hurting inside/ Keep fooling myself / that everyone cares/ and they’re all full of love”. Never let me go, guitarra cortante a silvar entre os sintetizadores e a caixa de ritmos, modo rock gótico em circuito synth-pop, dá, por sua vez, verbo inglês ao título latino do álbum (Memento mori significa algo como “recorda-te de que um dia morrerás”). “There’s only so much time/ we have to play with/ to waste it is a crime/ we have so much to give”, canta Gahan.

Assim regressam, então, os Depeche Mode: entre o desencanto e a esperança, entre as trevas e a luminosidade, entre melodias pop e electrónica soturna, máquina sedenta de um hedonismo que nunca se atinge totalmente — demasiada ansiedade, demasiadas sombras no horizonte.

Memento Mori arranca com a pulsação de um baixo poderoso, distorcido, envolvida em rugosidades electrónicas. Um som de tumulto que ascenderá a céus gospel, My cosmos is mine, assim se intitula a canção, como que sintonizada na Blackstar de Bowie, e uma voz que insiste: “No war, no war, no war/ no more, no more, no more/ no fear, no fear, no fear/ not here, not here, not here” — um grande arranque de álbum, a apresentar-nos na perfeição os temas e o ambiente musical que encontraremos nas 11 canções e 45 minutos seguintes.

Ghosts again, o primeiro single, que Gahan diz que encheria as medidas de Andy Fletcher, com a sua melodia orelhuda, guitarra de som saturado e batida insistente, é um clássico Depeche Mode, oitentas mais oitentas não há, e, consequentemente, soa algo datada, relíquia de outros tempos — pelo menos, até percebermos que este som sintético está hoje por todo o lado, aproveitado e recontextualizado de mil formas na pop, no rock, no hip-hop (Before we drown e Always you seguem caminhos semelhantes). Memento Mori é claramente mais interessante quando, tendo bem presentes essas impressões digitais da banda, contorna a mimetização nostálgica.

Don’t say you love me, balada negra com orquestrações opulentas, lenta caminhada electrónica com Gahan encarnando um storyteller amaldiçoado, à Cave, e Gore a fazer ecoar a guitarra como em banda sonora de Morricone, tem um dramatismo a que é impossível ficar indiferente. Caroline’s monkey são os blues a correr, arfantes de demasiada pregação, pelos circuitos de um sintetizador. My favourite stranger é canção minimalista atirada para as penumbras do rock industrial, toda ela ecos e sons de origem incerta — guitarras que soam a sintetizadores e vice-versa —, enquanto que Soul with me é a inesperada versão Depeche Mode de uma balada soul à Prince, olhos postos na eternidade: “Follow the light/ towards the voices calling/ I’m going where the angels fly”.

Quando as gravações estavam a dar os primeiros passos, Dave Gahan tinha dúvidas quanto à criação de um novo álbum. Estava a apreciar sobremaneira a sua vida caseira nos Estados Unidos, entre família a animais de estimação, e sabia que à edição de um novo álbum seguir-se-ia, naturalmente, uma longa digressão (já está a acontecer: a Memento Mori Tour teve início no dia 23 de Março em Sacramento, EUA). Acabou por aceder. A morte de Andew Fletcher, que não chegou a ouvir nenhuma das canções finalizadas, deu-lhe sentido derradeiro e aproximou Gahan e Gore como nunca antes. Sem o teclista que servia como ponte entre os dois, tantas vezes desavindos, foram obrigados a falar verdadeiramente um com o outro, a ouvirem-se, a trabalharem em conjunto como nunca haviam feito antes.

Um som etéreo, aquela voz grave, a guitarra que geme, lamentosa. Uma massa sonora que começa a erguer-se à distância, envolvendo-nos no seu crescendo tumultuoso. “Speak to me, in a language/ that I can understand/ Tell me that you’re listening/ Give me some kind of plan/ Give me something, you’d be my drug of choice/ you lead me, I follow your voice”. Speak to me, a última canção. O tumulto electrónico atinge o seu auge e, a partir daí, os seus elementos começam a diluir-se, a desintegrarem-se. Resta ruído, um zumbido que vai ficando cada vez mais distante. O silêncio, por fim. Memento mori, disseram os Depeche Mode.

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