Da engrenagem que isolou os professores

É inegável que os professores tiveram responsabilidades. (...) Se a máquina diabólica da avaliação do desempenho foi imposta por políticos, foram professores que a desenharam e aplicaram.

O isolamento dos professores foi uma conclusão recorrente e incontestável. Apesar da cimeira consideração por parte de alunos, encarregados de educação e opinião pública, os professores inscreveram, nos últimos vinte anos, a ausência de apoio no crucial universo que cruzou a política com a opinião mediatizada. Aliás, o cinismo triunfou em toda a linha. Quando muito, receberam um suporte tímido de oposições parlamentares que mudaram diametralmente de posição ao constituírem uma fórmula de Governo.

Para a desvalorização da defesa do grupo profissional que mais protestou na Europa, prevaleceram duas ideias: o gesto desagrada a eleitores e não se defende uma corporação. Os resultados dessa viciação tornaram-se concludentes: dramática perda de atractividade da profissão, "fuga" como o substantivo mais sonhado por quem resistiu, ou não teve alternativa, e custos elevados para os alunos e para a democracia.

Em rigor, perdeu-se qualidade na escola pública e no livre exercício de ensinar e aprender, numa fase em que o "aumento brutal das desigualdades educativas" se plasmou na mudança no elevador social: o investimento financeiro, e o seu efeito de bola de neve, secundarizou o talento e o esforço.

Recorde-se, ainda como ponto prévio: foram os professores os inventores da escola e a previsão do Fórum Económico Mundial excluiu-os das profissões com tendência a desaparecer. É certo que a Inteligência Artificial acelerou e que há áreas do ensino ameaçadas pelos "ChatGPT"; mas ameaças didácticas não são sentenças existenciais, como avisou o ensino digital durante a pandemia.

Mas há certezas nas causas que empurraram o exercício para a queda: o ultraliberalismo, que impôs o salve-se quem puder e os cortes a eito na educação, associado a uma engrenagem, trituradora e diabólica, que regista responsabilidades dos professores.

Mas antes dessas responsabilidades, acrescente-se atributos essenciais do desastre em curso: não adianta repetir-se que os professores não querem ser avaliados, quando o que sobra é uma farsa administrativa que suporta uma febre "meritocrática" que infantiliza as organizações. Acima de tudo, uma das questões fundamentais dos professores, e para além do tempo de serviço, da precarização e da doentia, e não democrática, organização das escolas, é o que se avalia associado à aberração que só existe por cá: pontuar de 1 a 10 e acrescentar quotas e vagas.

Pois bem, aclame-se que ensinar é exigente. Convoca esperança, confiança da retaguarda e estudo. Se a sua génese é a elevação de aprendizagens, à cultura da finalidade e da regra associa-se a amizade e o drama. Ensinar é escrutinado rigorosamente aula a aula, com tomadas de decisão difíceis ao minuto. Quanto mais turmas se lecciona (e não há turmas iguais), mais exposto se está ao erro e à incompreensão que não beneficia da aura optimista, e sempre reconhecida, dos denominados projectos. Em resumo, o ensino simultâneo de vinte a trinta crianças ou jovens, despertando entusiasmo pelo conhecimento até em "quem não quer aprender", transporta uma ignorância lapidar: não se sabe como cada um aprende.

Chegados aqui, é de elementar conhecimento que o professor é o primeiro que sabe que nada sabe. Além disso, há património pedagógico que ensina que é extractivo aprender apenas porque se quer ser melhor do que os outros, ou porque há uma recompensa material, e que é inclusivo e superior aprender porque se quer saber mais e se tem curiosidade. Os professores são os guardiões desses princípios e a aplicação na sua profissionalidade uma lição exemplar.

Por isso, não hierarquizar desempenhos em comparação com os pares é o possível, e o decente, como consolidaram as democracias mais avançadas. Daí que a escolha do melhor, ou do mais excelente, professor seja obscurantista. Há, e há muito, literatura suficiente (aconselha-se "Diane Ravitch, Fundação Gates ou Obama Race to the Top" aos que enchem a retórica com mérito, inclusão, flexibilidade, avaliação formativa e democracia) que explica os desastres "meritocráticos": "fuga" e perda fatal de atractividade.

É, portanto, inegável que os professores tiveram responsabilidades. Não todos, obviamente e longe disso, nem sequer os que cederam em nome da sanidade. E se a máquina diabólica da avaliação do desempenho foi imposta por políticos, foram professores que a desenharam e aplicaram. O "agradecimento" financeiro dos sucessivos governos acomodou-se numa casta de concordantes que jogou, com convicção, o jogo do "sou o excelente" ou do dirigente autocrata capacitado para a escolha dos melhores em dezenas de áreas científicas. Ou seja, a queda das escolas em ambientes de amiguismo e parcialidade teve o histórico cunho dos concordantes.

Por outro lado, congelou-se a engrenagem até 2017. Em 2018 recomeçou a danação do tempo, a invenção de realidades, a revolta contida e a asfixia das organizações. A pandemia adiou a explosão. A dilaceração ética cresceu e o final de 2022 assistiu ao grito em curso. O Governo, espantosamente desorientado e surpreendido com uma falta de professores que se adivinhava há mais de uma década, limitou-se a recuar 20 anos em matéria de concursos (como se essa fosse a única chave do labirinto).

A bem dizer, a arbitrariedade destrói as organizações e provoca a “fuga” dos profissionais em prejuízo do bem comum; e que ninguém se iluda: a engrenagem continua a triturar a dignidade que resta e os jovens professores captam de imediato uma insanidade repleta de injustiças que os avalia com quotas e sem qualquer "olhos nos olhos".

Em suma, quebre-se o isolamento da escola pública. Livrem-na do Taylorismo (poucos pensam, e avaliam, muito executam) que contraria as organizações modernas, e a ideia de Europa, onde prevalecem redes com vários servidores e achatamento de patamares de decisão. Aliás, o nosso século XX formou a geração mais habilitada num lugar democrático ímpar na nossa História: a escola pública. E os historiadores (se os houver, tal o trato dado às humanidades) registarão o que as próximas gerações não nos perdoarão: a extinção da escola democrática imediatamente a seguir à sua generalização.

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