O liberalismo tem as costas largas

O liberalismo não é um conceito unívoco: tem variantes, que se foram definindo ao longo do tempo. Um liberal pode identificar-se mais com umas do que com outras.

Em Verona, o Palazzo del Comune ("câmara municipal"), do século XII, tem na fachada o esgrafito de uma cara, com um aspeto singular, cuja boca é uma abertura. Por cima da cara está escrito: "Denunzie secrete contro usurari e contrati usuratrice di qualinque sorte" ("denúncias secretas contra agiotas e contratos usurários de qualquer tipo"). As denúncias eram inseridas nessa abertura ("bocca della verità") para serem investigadas. É fácil perceber que, se não houvesse anonimato, uma queixa contra um agiota muito dificilmente seria feita, por medo de represálias.

Lembrei-me disto quando ouvi alguém afirmar, na última reunião magna da Iniciativa Liberal, que as denúncias anónimas “não são liberais”. É uma frase absurda, porque ao liberalismo é irrelevante se as denúncias são anónimas ou não.

Este é um exemplo do uso abusivo a que o termo “liberalismo” é sujeito, pelo que convém clarificá-lo.

O liberalismo não é um conceito unívoco: tem variantes, que se foram definindo ao longo do tempo. Um liberal pode identificar-se mais com umas do que com outras, desde que aceite a ideia essencial, formulada por Thomas Hobbes ainda antes da era democrática, de que cada indivíduo tem direito ao seu espaço fundamental, protegido da intervenção arbitrária do poder, que lhe garanta liberdade de expressão, de atuação sem medo ou favores, de ter a profissão que entender e de dispor como lhe aprouver da sua propriedade, dentro dos limites da lei.

Trata-se de um princípio que assumiu um caráter constitucional e que se consubstanciou no “estado de direito”.

O conceito de liberalismo foi depois alargado para abranger também a liberdade de interações económicas, por forma a que os indivíduos pudessem beneficiar da livre troca de bens, competindo ao Estado assegurar uma estabilidade social que garantisse um mercado sem entraves. Com a liberdade de empreendimento, cada indivíduo pode atuar para alterar o ambiente social e económico – nas palavras de John Bright, “para promover o bem-estar de uma nação”. Richard Cobden foi mais longe, ao considerar o mercado livre como um mecanismo de “união dos homens, colocando de lado antagonismos de raças, credos e línguas” – é uma ideia generosa, mas algo ingénua, tendo em conta a tendência humana para a agressividade e a insaciabilidade.

Já o reconhecimento de que pobreza, doença, ignorância, insalubridade e indolência eram os cinco grandes obstáculos ao “desenvolvimento individual” (expressão de Stuart Mill) levou a que o primeiro governo liberal do Reino Unido lançasse em 1911 o primeiro seguro obrigatório de saúde e desemprego, para o qual eram obrigados a contribuir tanto empregadores como empregados. Em 1942, no mesmo país, foi publicado o Relatório Beveridge, criação de um outro liberal, William Beveridge, que tinha sido encarregado por Churchill de – já a pensar no pós-guerra – criar um programa para reduzir substancialmente a pobreza através de um “seguro social” e de subsídios para crianças. O Estado social é indiscutivelmente uma criação liberal.

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William Beveridge (1879-1963) foi o autor do "Report on Social Insurance and Allied Services"

Passou a haver uma rejeição alargada por parte dos pensadores liberais ao conceito teórico do “homem económico” da “Escola de Manchester” (século XIX), à qual foram criticadas a falta de atenção aos desprivilegiados e a desvalorização do papel que a sociedade tem na criação de riqueza.

A mais recente tendência liberal é a do reconhecimento da diversidade de grupos com diferentes estilos de vida e credos, com o objetivo de criar uma sociedade plural e tolerante. É uma ideia magnânima, mas polémica. Podem as caricaturas de Maomé ser proibidas para não ofender o islão? Pode o liberalismo tolerar práticas iliberais de certos grupos no seu seio apenas em nome da diversidade e da autodeterminação?

Nasceu no campo marxista uma tendência de caricaturar o liberalismo para melhor o combater: o liberalismo é uma ideologia burguesa, que favorece os interesses capitalistas às custas da classe trabalhadora e se preocupa com os interesses humanos em abstrato, em vez de ter em atenção o “avanço” concreto das condições materiais das populações. Penso ter demonstrado que não é assim.

O liberalismo também não é, certamente, “neoliberal”. Esta é uma famosa falsificação. Os “neoliberais” viam o mundo como um imenso mercado, em que a troca de bens e a prestação de serviços pelo lucro se sobrepunham a quaisquer questões sociais e políticas. Mais uma vez, como demonstrei acima, esta visão não tem qualquer aceitação no pensamento liberal atual.

Não por acaso, o liberalismo foi a base da criação da CEE, em 1957, e continua a ser a força motriz da atual União Europeia, assente “numa economia social de mercado altamente competitiva” (artigo 3.º do Tratado da União).

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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