Os escoceses estão a tentar fazer whisky neutro em carbono. Mas não está fácil

Proprietários de 140 destilarias na Escócia comprometeram-se a transformar a indústria e a tornar as suas operações neutras em emissões de carbono. Vão usar vento, aparas de madeira e marés.

Foto
Fazer whisky escocês pode ser um negócio sujo – uma indústria de queima de turfa, que consome muita energia, de alto teor de carbono Jeff J Mitchell

Um consumidor pode não o saber pelos belos anúncios, que fazem propaganda aos riachos nas montanhas e às terras altas, cheias de lanosas ovelhas, mas fazer whisky escocês pode ser um negócio sujo – uma indústria de queima de turfa, que consome muita energia, de alto teor de carbono, propriedade na sua maioria de conglomerados multinacionais que enviam as suas garrafas de mais de 50 euros para todo o mundo.

Nas perfeitas ilhas ocidentais da Escócia, famosas pelo seu whisky –​ Islay, Skye, Jura, Arran –, as destilarias caiadas são frequentemente as maiores fontes de emissões de gases com efeito de estufa nas suas regiões bucólicas, à frente dos ferries a diesel e das ovelhas, responsáveis por emissões de metano. Mas algo está a acontecer.

Os proprietários das 140 destilarias existente na Escócia comprometeram-se, voluntariamente, a transformar a indústria e a tornar as suas operações com zero emissões líquidas de carbono até 2040, uma década antes da Grã-Bretanha como um todo e cinco anos antes do prometido pela Escócia.

A Scotch Whisky Association quer que os consumidores imaginem um novo futuro quando as destilarias dos tempos antigos se afastarem dos combustíveis fósseis e se voltarem para a energia gerada pelo vento e por aparas de madeira, pelas marés oceânicas e pelo hidrogénio verde do século XXI.

Os fabricantes prevêem um dia em que vão usar mais sabiamente a pura água da Escócia [muitas pessoas acreditam que a qualidade da água é o segredo do whisky escocês] e reciclar melhor os seus resíduos, colocando as borras –​ os subprodutos, como os grãos (mosto) e o líquido que sobra do processo de fabrico –​ numa virtuosa economia circular de fertilizantes, ração animal e biocombustível.

Em breve, esperam, aqueles autocarros de transporte rodoviário que transportam os turistas em estradas estreitas em torno de lagos, em excursões de degustação de whisky, funcionarão com baterias recarregadas nas 30.000 novas estações de carregamento que a Escócia prometeu até 2030.

Se o negócio do whisky será capaz de fazer isto, e fazê-lo tão rapidamente, é incerto. Muitas indústrias poluidoras –​ navegação, aço, aviação, cimento –​ estão igualmente a prometer mudanças rápidas, baseadas em tecnologias que ainda não estão disponíveis à escala comercial. Pode ser difícil separar um compromisso sério de slogans de campanha.

Mas os destiladores da Escócia têm algumas coisas a seu favor. Têm bolsos cheios num país rico e com grandes ambições verdes. Podem beneficiar da mudança da Escócia para as energias renováveis, e têm os recursos financeiros para dar uma oportunidade às suas experiências "net-zero". O whisky escocês é a maior exportação de alimentos e bebidas do Reino Unido, com vendas anuais avaliadas em quase 7 mil milhões de dólares em 2022.

Foto
Emily Macinnes/The Washington Post

As destilarias escocesas também têm uma longa visão. Fazem parte de uma tradição com séculos, e pensam em décadas, produzindo bebidas espirituosas que muitas vezes passam 12 anos ou mais a amadurecer em barris. Podem ver claramente que há apenas uma direcção a seguir.

Muitas promessas, alguns progressos

Ajuda ainda o facto de os produtores internacionais de energia terem descido à Escócia para fazer investimentos de milhares de milhões de dólares, projectando águas costeiras cobertas por vastos parques eólicos, bombeando electricidade para terra, com alguma dessa electricidade desviada para fazer do hidrogénio verde comercial um "santo graal" para um mundo "net-zero".

Estes parques eólicos serão localizados mesmo ali, ao largo das ilhas de whisky.

Com a transição verde da Escócia, o sector do whisky reduziu as suas emissões de carbono em mais de metade desde 2009, uma vez que passou de consumir apenas 2% de energia renovável para 39% em 2022.

A indústria também está a fazer os seus próprios investimentos com resultados variados.

A Destilaria de Ardgowan, em parceria com uma universidade e uma empresa de engenharia, comprometeu-se a ser "carbono negativa" nas suas operações até ao próximo ano, desenvolvendo tecnologia para capturar todo o CO2 no seu processo de fermentação e para o transformar em biometano verde.

Foto
Peter Summers/Getty Images

Isso seria impressionante. Hoje em dia, a maioria das destilarias apenas ventila o seu dióxido de carbono directamente para a atmosfera, uma vez que não existe mercado para ele.

Na Destilaria Glengoyne, os visitantes podem visitar as suas lagoas de decantação, cheias de canas, concebidas para limpar as águas residuais. Os resíduos sólidos do fabricante são agora também colhidos, como biocombustível para alimentar 354 casas próximas. Adoptaram ainda uma zona húmida a jusante.

Mas a destilaria continua a funcionar com combustíveis fósseis e as águas residuais tratadas não são bebíveis. Apenas cumprem as normas mínimas para deitar nos pântanos.

A destilaria Bruichladdich fez notícia quando se comprometeu a chegar à neutralidade carbónica ainda mais cedo do que 2030. Mas o chefe executivo da empresa, Douglas Taylor, disse ao The Washington Post, que, afinal, isto é muito mais difícil do que ele imaginava.

"Somos uma empresa de bebidas. Não somos uma empresa de energia", disse Taylor, constatando ainda: "Não somos proprietários de uma turbina eólica ou de uma máquina de marés.”

Douglas Taylor insiste que quer que a sua empresa desempenhe o seu papel num ecossistema sustentável, diversificado e rural. A sua destilaria é o maior empregador das ilhas, com 117 trabalhadores. Taylor compra a maior parte da sua cevada localmente, o que reduz a sua pegada de carbono.

Mas numa tentativa precoce de reduzir as emissões de carbono, a destilaria tentou um sistema de digestão anaeróbica para produzir combustível. Falhou. O destilador mudou de óleo pesado para óleo médio, para um óleo de aquecimento comercial. Um pouco mais limpo? Sim. Mas muito longe da neutralidade carbónica. Taylor disse que queriam instalar caldeiras preparadas para hidrogénio, mas ainda não há hidrogénio disponível na ilha.

A Scottish Power começou a construir o Projecto Hidrogénio Cromarty, a norte de Inverness, que utilizará vento offshore para produzir hidrogénio verde em terra, o qual ficará disponível para um centro de negócios, incluindo o fabricante de whisky Glenmorangie, numa zona industrial. Mas isto fica muito longe dos alambiques de Taylor.

Douglas Taylor está a explorar a instalação do seu próprio electrolisador para fazer o hidrogénio, com os seus próprios tanques para o armazenar. Mas ainda não tem as licenças, nem a engenharia ou o financiamento. "Não consigo explicar a complexidade de tudo isto", conclui.

Whisky com raspas de madeira

Um facto incontornável, disse Annabel Thomas, fundadora da destilaria Nc'nean, é que algum tipo de combustível tem de ferver o mosto e destilar o álcool. "Não podemos livrar-nos da caldeira – tal como não nos podemos livrar do motor a jacto num avião", resume Thomas, que dirige o seu negócio na península de Morvern, nas Terras Altas Ocidentais, situada na lindíssima propriedade da sua família, com uma vista deslumbrante sobre o lago.

Nos velhos tempos, a energia para aquecer as caldeiras vinha do carvão. Hoje em dia, é de gás natural ou fuelóleo o petróleo tipicamente transportado por petroleiros a diesel que navegam nos mares e depois transportado por camiões a diesel que se deslocam ao longo de estreitas estradas agrícolas.

Annabel Thomas confessa que tem pensado muito sobre o futuro o futuro do planeta e as suas vendas futuras. O whisky é um luxo, uma indulgência, e ela sabe disso. "E se a indústria não mudar, perderemos gerações mais jovens", lamenta.

Foto
Jeff J Mitchell

A sua família tinha uma plantação comercial de árvores na propriedade há 40 anos, e pensou: "Porque não? Torna-se muito simples." O plano? "Colher as árvores, passá-las pelo picador de madeira, alimentar as caldeiras dessa forma e, depois, replantar as árvores."

A destilaria tinha a vantagem de ser nova lançada em 2017, com as primeiras garrafas cheias em 2020. Tiveram de remodelar celeiros antigos, mas compraram caldeiras novas e não tiveram de modernizar sistemas centenários, como muitas destilarias serão obrigadas a fazer.

Amy Stammers é chefe de sustentabilidade na Nc'nean um emprego que não existiria há cinco anos. Leva-nos numa visita guiada à destilaria enquanto os seus colegas de trabalho mais mulheres do que homens – se mexem à volta das caldeiras, medindo, farejando, observando calibres, como Oompa Loompas numa fábrica de doces Wonka.

"A próxima geração de destilaria será provavelmente de hidrogénio", projecta Amy Stammers. "Esta é uma versão do futuro. Mas, quando olhamos para ela, ainda está a 10 anos de distância. Ainda não estava lá. Portanto, fazia mais sentido para nós utilizarmos biomassa, com as nossas árvores. Mas, no futuro, quem sabe?"

O problema da turfa

Uma das primeiras decisões que a destilaria Nc'nean tomou foi a de que não aromatizaria os seus produtos queimando turfa durante a secagem do malte.

As turfeiras são consideradas um recurso precioso. Estes ecossistemas alagados, ácidos e de baixo teor de nutrientes são dos habitats mais densos em carbono da Terra.

Quer armazenar carbono com segurança durante mil anos? Nada bate a turfa. É o cofre da natureza. Mas a turfa é também central nas tradições de fabrico de muitos whiskies escoceses, ajudando a dar-lhes o seu sabor fumado. Nenhuma das principais marcas alterou as suas receitas. Em sua defesa, a indústria de whisky diz utilizar menos de 1% do total da turfa que é extraída anualmente na Grã-Bretanha.

Mesmo assim, o Beam Suntory japonês, proprietário de marcas escocesas, incluindo a Laphroaig, anunciou recentemente um projecto de mais de 3,5 milhões de euros destinado a restaurar pântanos de turfa degradada. O conglomerado de bebidas Diageo, que vende Talisker, comprometeu-se igualmente a reparar centenas de acres de turfa na ilha de Islay.

Se estes tipos de mitigações são sustentáveis, é discutível. As turfeiras estão a desaparecer, e acumulam carbono ao longo de séculos não de um ano ou dois. Da mesma forma, as aparas de madeira são renováveis, mas são necessárias décadas para substituir uma árvore.

O desafio é suficientemente exigente para a própria Whisky Magazine um impulsionador – chegar rapidamente à conclusão: "Seja como for, um dos ingredientes mais importantes na produção de whisky é um combustível fóssil e essa nem sequer é a pior parte."

Foto
Vapor a sair de uma chaminé na destilaria Nc'nean Emily Macinnes/The Washington Post