Entre o ponto de partida e o ponto de chegada

O melhor que podemos fazer, às vezes, é dar a mão a alguém e fingir que somos guiados.

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Cottonbro/Pexels

1

Chego a uma das salas de espera do Hospital de Egas Moniz, em Lisboa, e sento-me. Olho em redor. A sala tem uma configuração em “T”. Ou seja, não é uma sala, mas sim um cruzamento, em que um corredor apanha o outro a meio. Imagino-me a vir do corredor secundário e, face à ausência de sinalização, a parar para dar prioridade a quem se apresenta pela direita no corredor principal e, acreditando que a regra da prioridade é respeitada, a avançar perante os que se apresentarem pela esquerda.

Estou sentado perto da esquina e entretenho-me a observar como lidam as pessoas com este cruzamento. Num minuto concluo que a maioria das pessoas adota uma versão silenciosa da máxima marroquina de abordagem aos cruzamentos, rotundas e afins: apita enquanto fecha os olhos e avança.

A máxima é da minha autoria e espelha o que aprendi e pratiquei em deambulações motorizadas em Marrocos. Em Marrocos, sê marroquino.

2

Tiro as Viagens de Olga Tokarczuk debaixo do braço e, semicerrando os olhos para espremer a memória, reposiciono-me: página 127, cinco linhas a partir do topo. Desde a página 92 que não utilizo marcador: “A partir dos trinta, o ser humano começa lentamente a encolher”, alerta Olga. Agora, decoro a página e a linha onde interrompo a leitura. Quero acreditar que esta prática, e outras do género, me salvarão dos encolhimentos da memória que se dizem próprios do avançar da idade. Mesmo que esquecer uma ou outra coisa traga tanto bem ao mundo.

Retomo a leitura na página 127, cinco linhas a partir do topo: “Blau saía, agora, do corpo daquele avião por longuíssimos túneis, seguindo as setas e sem perder de vista os quadros luminosos com informações que gentilmente dividiam os passageiros naqueles que acabavam de chegar ao destino e naqueles que continuavam viagem.”

– Eu venho para uma consulta –, diz uma senhora na casa dos 70.

– Mostre-me a credencial, por favor.

– Aqui está.

– Então, mas isto não é neste hospital. É em São Francisco Xavier. Sabe onde é?

Ausência de resposta.

A senhora aceita a credencial da mão da administrativa, dá dois passos e imobiliza-se a meio do cruzamento, onde é quase abalroada por um funcionário desgovernado com uma pilha de caixas na mão. O jovem desvia-se no último momento sem apitar ou reclamar. Pergunto-me se será marroquino.

A senhora nem se apercebe que o embate esteve iminente e mantém-se imóvel, a olhar para um vazio cheio de gente estacionada na berma da estrada.

Vazia. Perdida. “Quais são as coordenadas?”, adivinho-lhe no pensamento.

Fecho o livro e levanto-me para a rebocar para onde quer que queira ir, mesmo que para lugar nenhum. O melhor que podemos fazer, às vezes, é dar a mão a alguém e fingir que somos guiados. Guiar alguém nos confere sentido de responsabilidade e uma direção, mesmo que não façamos a mínima ideia para onde nos levará.

Nesse instante, uma outra funcionária que acompanhara a conversa aproxima-se da senhora.

– Precisa de ajuda?

– Eu achava que estava no São Francisco Xavier –, responde a senhora.

– Veio sozinha?

– Sim.

– Quer ligar a alguém?

– Não vale a pena, estão todos a trabalhar. E ninguém sabe que vim. Eu apanho um táxi.

– Eu levo-a lá abaixo.

Sentei-me.

3

Com o cruzamento desimpedido e a senhora a ser rebocada em segurança, abro as Viagens e procuro algo que sei ter lido e que se relaciona com o sucedido. Encontro-o na página 49: “Em todo o lado e em parte nenhuma | Quando viajo, desapareço do mapa. Ninguém sabe onde estou. Se estou ainda no ponto de partida ou se já estou no ponto de chegada. Será que existe um ‘entre’ as duas coisas?”

4

Quando chamam o meu número, arranco com cuidado. Saio de um estacionamento, perda de prioridade também para quem vem da esquerda. Despachado em dez minutos, dirijo-me para saída. À distância, já na rua, vejo a senhora acompanhada da funcionária a dirigirem-se para um carro que acabou de parar em frente à entrada do parque de estacionamento do hospital, bloqueando a passagem. Ouvem-se algumas buzinadelas. Tudo normal. Um homem dos seus 40 anos sai do carro, cumprimenta a senhora com um beijo rápido e abre a porta para que a senhora ocupe o lugar da frente. Arrancam.

5

Fico a ver o carro a afastar-se no topo de uma escada com meia dúzia de degraus. Sento-me no primeiro e folheio as Viagens à procura de algo que sei ter lido e que se relaciona com o que observei. Encontro-o na página 72: “O Tempo Certo e o Lugar Certo | Muitas pessoas acreditam que, no sistema das coordenadas geográficas, existe um ponto perfeito, onde o tempo e o espaço chegam a acordo. Talvez seja por essa razão que partem de casa, pensando que, mesmo que se movimentem caoticamente, aumentam a probabilidade de encontrar esse ponto. Se nos encontrarmos no momento certo e no espaço certo, há que aproveitar a ocasião, agarrar o momento com unhas e dentes para descodificar o código da fechadura, descobrir a combinação secreta dos algarismos e desvendar a verdade. Não perder a oportunidade, surfar as ondas do acaso, as coincidências e os caprichos do destino. Nada mais é preciso — basta apresentar-se, marcar presença nesta configuração do tempo e do espaço. Aí, tudo se pode encontrar: um grande amor, a felicidade, a chave para o primeiro prémio da lotaria, a explicação para um mistério que, em vão, todos tentam há muito resolver ou, então, à morte. Há vezes em que, logo de manhã, temos a impressão de que esse momento está prestes a chegar e de que poderá ocorrer ainda hoje.”

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