Por que compramos? A flex culture que nos leva a consumir cada vez mais

Comprar em saldo, torna-se um vício, porque é quase como um jogo: em primeiro lugar, a roleta russa para saber se aquela peça ainda vai lá estar, depois o jogo de azar para encontrar o tamanho certo.

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"Contam-se pelos dedos de uma mão as peças que comprei fora de saldos" Freestocks/Unsplash

Nunca tive muito dinheiro para comprar roupa e, talvez por isso, ao longo do tempo tenha encontrado estratégias para fazer muito, com pouco, ou fórmulas para poder comprar, gastando o mínimo possível. Tornei-me especialista em encontrar peças únicas nas lojas que vendem roupa igual, dominar promoções, usar os saldos a meu favor e a conhecer os outlets para comprar as peças mais caras sem gastar muito dinheiro. Durante muito tempo, parecia-me importante comprar. Hoje sei que, mais do que comprar, importa saber comprar. Tudo se aprende. Também a nossa relação com a moda é um processo.

Truques para comprar mais por menos. Ainda fazem sentido?

Olhando para o meu guarda-roupa, contam-se pelos dedos de uma mão as peças que comprei fora de saldos, promoção ou em outlets. Mais recentemente acrescentam-se peças compradas em segunda mão e as que trouxe de mercados de trocas, enriquecendo o guarda-roupa sem gastar dinheiro.

Comprar em saldo, para além de um hábito, torna-se um vício, porque é quase como um jogo: em primeiro lugar, a roleta russa para saber se aquela peça ainda vai lá estar, depois o jogo de azar para encontrar o tamanho certo.

Por isso, não vou às lojas. Passo à porta quando estou em zonas comerciais mas não frequento as lojas para ver as novidades. Também por isso, interessa-me saber as razões que nos levam a consumir. O que está por detrás das nossas decisões de consumo e como estas são afectadas, por exemplo, pela disposição da roupa nas lojas. Novamente, por essa razão não vou às lojas e, quando vou, ou entro de rompante à procura daquilo que preciso ou assumo e deixo-me ir. Se baixo a guarda, se circulo devagar, se arrisco a percorrer a área de exposição, acabo por me deixar afectar.

Isso fez-me querer aprender mais sobre estilo, a semiótica da roupa que vestimos. Como se define, o que caracteriza, como isso nos expressa e que influência tem sobre nós. A seguir fui conhecer as técnicas de disposição dos produtos em loja, a organização da loja e a sua influência nas vendas. Como está tudo relacionado, acabo a querer perceber a psicologia por trás do nosso comportamento de consumo, como a moda influência e o estilo determina quem somos e nos apresentamos ao outro.

A psicologia da moda

A roupa que usamos é realmente importante, conta uma história e diz algo sobre nós, mais que não seja, que não queremos saber: que não nos interessa a roupa que escolhemos usar; que não nos preocupa o que os outros pensam de nós, se é que pensam alguma coisa.

Contudo, não é exactamente assim para a maior parte das pessoas e vou dar-vos o exemplo de uma amiga que, educadamente, colocou um interlocutor no seu lugar em relação à roupa que usa. Explicou-lhe que aquilo que ele achava desleixo era na verdade um casual geek. Cada peça era escolhida ao detalhe para passar determinada mensagem. Que cada cor, padrão, marca, acessório (ou falta dele) tinham um simbolismo próprio para cada grupo social onde ela se insere.

O interlocutor em questão esteve três meses a reflectir e admitiu que nunca tinha pensado nisso. Olhando em retrospetiva, reconheceu que era exatamente assim. E ela acrescentou que, em 90% das vezes que a via, deveria ir além do óbvio e que ela era, também, uma creative communication manager & content producer. Ou seja, tem uma profissão que mistura o trabalho executivo com o trabalho criativo na área da comunicação e marketing, onde nada se exige mas na qual o que vestimos determina, à partida, quão criativos seremos.

Criamos relações estéticas e emocionais com o nosso guarda-roupa (Orsola de Castro é um excelente exemplo) e as escolhas que fazemos contribuem para a construção de uma identidade e do nosso posicionamento social. Basta pensarmos na indústria paralela da contrafacção e do preconceito associado à utilização de marcas falsas.

Esta ligação directa entre a roupa, a marca e o estatuto social relaciona-se também com muitas crenças individuais e sociais, associadas à nossa noção individual de valor e merecimento. Muitos tendem a definir-se em função do estatuto social que podem demonstrar através das marcas que escolhem usar.

A sociologia explica que, além de ser funcional, a moda é uma estrutura de consumo e estatuto com uma linguagem própria que comunica a nossa identidade social. Acreditem, há mais na moda e nas escolhas que fazemos do que a mera superficialidade associada à conversa “dos trapinhos” e das compras.

Se a roupa comunica, somos definidos pelo que usamos?

A resposta é simples e directa: sim.

Um exemplo contemporâneo está directamente relacionado com a emergência climática que vivemos. A ideologia de que a moda é uma forma de auto-expressão é uma construção social que também pode expressar preocupações éticas ou ecológicas (por exemplo, usando apenas marcas locais, ou éticas, ou com materiais reciclados, ou vegan).

A moda é sobre e para pessoas porque não só envolve milhões de pessoas como serve outros tantos milhões. Ninguém anda despido (existem alguns que sim mas a maioria das pessoas veste-se).

A roupa é uma segunda pele e a que mais prejudica o ambiente o que, em última análise, quer dizer que nos prejudica de forma directa e indirecta: porque os tecidos usados têm influência na nossa saúde e porque a sua produção influencia o ambiente em que vivemos.

Se, por um lado, estamos cada vez mais informados e exigentes, por outro, a mudança é tão difícil de implementar (sobretudo porque mudar hábitos e rotinas é um exercício que evitamos).

Contudo, nunca foi tão fácil encontrar alternativas para definir o nosso estilo, escolher a roupa e, por consequência, a nossa identidade. Lojas online, marcas novas, inspiração que nos chega de todas as partes do mundo através dos media e redes sociais digitais, bem como através de todas as pessoas que partilham ideias e formas diferentes de nos apresentarmos ao mundo.

Boa moda. Má moda: a velha história do polícia bom e do polícia mau

Nos filmes de detectives há quase sempre uma dupla que investiga um crime. Quando apanham um potencial informador ou uma testemunha, usam muitas vezes a estratégia do polícia bom e polícia mau: um que ameaça e assusta e outro que, em troca de informação, facilita a vida. E corre sempre tudo bem porque os filmes imitam a vida mas a vida é tudo menos um filme.

Na moda há muita culpabilização. Se é certo que não saímos à rua despidos, também é verdade que há muitos factores que ultrapassam a necessidade tangível de cobrir o corpo e protegê-lo do frio ou do calor. As marcas sabem-no e aproveitam-se para comunicar além desta necessidade objectiva.

Compramos mais do que precisamos, as marcas produzem cada vez mais e entrámos numa espiral que nos trouxe aqui, ao ponto de (quase) não-retorno, no qual nos fazem sentir culpados por comprar, enquanto nos bombardeiam com informação e outro tipo de culpabilização sobre comprarmos a mais.

Ficamos a pensar onde estará o meio-termo, o que estará certo ou errado. Uma das ideias que prevalece é a da fast fashion como a raiz de todo o mal, sem falarmos sobre todas as outras marcas que não são categorizadas como fast fashion e que, afinal, recorrem aos mesmos métodos e locais de produção, com um modelo de negócio que, em vez de assentar no volume, assenta no preço mais alto.

O problema são as marcas ou o que compramos a essas marcas? Se comprássemos menos, as marcas seriam obrigadas a produzir menos e, quem sabe, a produzir melhor. Há muitas marcas que não são fast fashion e cuja qualidade é equivalente à das marcas mais vezes criticadas, ou seja, têm uma qualidade igualmente duvidosa.

No geral, a produção faz-se em fábricas sem condições ou respeito pelos seus trabalhadores (maior detalhe neste artigo) e o descarte do que não queremos, do que devolvemos e do que já não se vende, acaba em aterros que estão a contaminar o mundo (mais informação neste artigo).

As condições de trabalho — ou a falta delas — é uma questão de direitos humanos com características diferentes em vários pontos do mundo, tornando difícil uniformizar o que deve a indústria fazer. No entanto, a escolha será sempre do consumidor. Se escolher comprar os artigos de maior qualidade e se escolher comprar menos, está a passar uma mensagem à indústria a qual, focada em folhas de Excel e nos números que estas representam, fará soar as campainhas de alarme. Não comprar pode ser um acto revolucionário, talvez a única forma de quem gere esta indústria perceber que temos um problema em mãos.

Comprar menos e pagar mais?

Para uma fatia muito grande da população, comprar melhor significa pagar mais e pagar mais não é possível. Como pagar mais também nem sempre se traduz numa maior qualidade e maior durabilidade, o consumidor continua a comprar o que já conhece, optando pela promoção dos 9,99€, substituindo as peças de roupa com muita facilidade e várias vezes ao ano.

Contas feitas, está a pagar mais porque é obrigado a substituir o artigo mais rapidamente. O que nos faz comprar mais barato, sabendo que, na verdade, estamos a pagar mais? A carteira vazia.

Nas muitas publicações que partilho sobre este tema, há uma resposta recorrente: o preço ou os salários miseráveis que nos impedem de fazer melhor escolhas, mesmo quando temos consciência de que não estamos a comprar de forma inteligente. Também sabemos que, em fim de vida (porque já não servem, porque já não gostamos, por exemplo) as T-shirts compradas a 9,99€ não vão servir mais ninguém porque não têm qualquer valor em segunda mão.

Sabemos que, quando compramos três T-shirts pelo preço de uma, não estamos a aproveitar uma promoção e também sabemos que, provavelmente, há duas delas que nunca iremos usar. Esta estratégia de marketing do "leve três e pague dois" (ou no caso, o preço equivale a apenas uma) faz com que compremos mais mas não faz com que usemos mais ou melhor. O segredo está no autocontrolo e, tal como não devemos ir ao supermercado quando temos fome (está provado que compramos mais do que precisamos, sobretudo, que compramos alimentos com mais gordura e açúcar, prejudiciais ao organismo), também não convém comprar roupa quando nos sentimos em baixo, infelizes ou frustrados.

É melhor fazer um passeio ao ar livre, meditar, ouvir música ou telefonar a alguém. Sai mais barato e faz melhor. Passear no centro comercial não é terapia ou uma actividade física, é um perigo para a carteira e provável frustração por não podermos comprar. Fazer scroll nas redes sociais quando estamos entediados também é perigoso porque tendem a apresentar-nos o que nos faz sentir ainda pior, seguido de artigos que podemos comprar para nos fazer sentir melhor. Estão a ver a relação?

Comprar tem de ser um acto consciente e consciencioso, uma experiência que nos dá prazer mas que não é a nossa única fonte de prazer e, sobretudo, que não nos faz acumular aquilo que não vamos vestir.

O segredo para controlar a nossa mente é simples: na loja, perguntarmo-nos se vamos realmente usar aquela(s) peça(s), experimentar de forma consciente, analisando a peça no nosso corpo, pensar como é que aquela(s) peça(s) encaixa(m) no que já temos, se estamos a comprar porque precisamos, porque nos apetece ou porque outras pessoas também compraram, quando iremos usar e como o iremos fazer.

Flex culture com e sem culpa

Se o consumo é um elemento central na sociedade contemporânea, não será uma atitude quase anti-consumo uma forma de criarmos a nossa identidade? No século XIX, Veblen definiu a conspicuous consumption, que é hoje a flex culture (The Theory of the Leisure Class), uma cultura de exibicionismo.

Apesar de vivermos numa flex culture, que usa o Tik Tok e o Instagram como plataformas para exibir o que possuímos e fazemos, numa estrutura baseada na inveja para prosperar e ampliar o consumo, esta também é uma cultura consciente do impacto desse consumo, promovendo uma vida sustentável. Se milhares estão a dar flex de um haul she in, outros tantos milhares estão a dar flex partilhando o impacto da mesma marca para o meio ambiente.

Há ainda os que sabem isto tudo e não sabem o que fazer, sentindo-se culpados sempre que compram roupa nova. Ao mesmo tempo, a moda em segunda mão ganha popularidade e há cada vez mais pessoas a abraçar este estilo que contribui para a circularidade na moda. Podemos olhar para tudo isto com uma lente optimista, que vê a mudança no comportamento de consumo: há estudos que demonstram que o comportamento de compra depende cada vez mais do compromisso da marca com a sustentabilidade social e ambiental, introduzindo práticas sustentáveis no seu comportamento de consumo. Alegria!

Como antes, perguntei aos meus seguidores no Instagram se compram a mais, se têm peças que não usam e se sentem culpa quando compram, descobri que sim, temos muitas peças de roupa que não vestimos e que compramos mais do que realmente necessitamos. A culpa está presente quando compramos e continuamos a comprar roupa que, depois, não usamos. O que fazer quando acontece?

Se voltarmos atrás no texto, o primeiro passo é ganhar consciência do que precisamos, ou não, de comprar. E também tenho a sorte de receber muitas mensagens e depoimentos de quem já não compra, de quem reutiliza ou reinventa o que já tem.

Transformar vestidos em saias é a prática mais comum, trocar roupa entre amigas também. O tricô ganha popularidade, o croché está em alta e a costura também.

Por vezes parece que tudo está realmente a mudar mas ainda há muito a fazer porque se trata de uma minoria. Ainda há muitas pessoas a viver um paradigma que as realiza através do consumo e para quem a palavra novo é uma espécie de religião. Para esses e para quem, por vezes, compra algo que não chega a vestir, qualquer opção que evite que a roupa acabe num aterro é válida: dar a um amigo, doar a instituições de caridade (certificando-nos de que realmente a roupa será doada e usada), vender online ou, quem sabe, por paradoxal que seja, entregar nas lojas de fast fashion que aceitam roupa.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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