“E não nos deixeis cair na tentação”

A negociação parece assemelhar-se a um jogo de imposição e do “tudo ou nada”. O “dar-se ao respeito” terá, provavelmente, de passar por exigências passíveis de serem faseadas.

Vivemos tempos caóticos na educação. Em parte, como consequência de um disruptivo estatuto da carreira docente que se começou a desenhar em 2006. E de um exercício profissional que viu progressivamente enredado numa teia de deveres burocráticos que foi ajudando a destruir a “paixão de ser professor”.

Ao longo destes anos, a panela de pressão foi atingindo limites insustentáveis. Há “mil e uma razões e sentimentos” para os professores reclamarem e protestarem: a precariedade, o “tempo congelado”, a “casa às costas”, o estrangulamento no acesso ao 5.º e 7.º escalão, a avaliação estrangulada pelas quotas, o inferno da burocracia, a dificuldade de fazer aprender aqueles alunos que se não reveem no “currículo uniforme pronto a vestir”, a desautorização frequente das “autoridades”… são algumas das faces do descontentamento e da exaustão. Mas deve também admitir-se que neste caldo de exigências há reclamações de difícil sustentação, servindo de exemplo tudo o que tem a ver com o regime (e o modelo) de recrutamento dos docentes.

É neste quadro que surge a tentação de tudo agora reclamar. Parece ser o tempo do “agora ou nunca”, das exigências ilimitadas para repor o “roubo”, reparar a injustiça, repor os direitos confiscados. E se exigir o respeito social e político. E enquanto se esticam todas as cordas, prosseguem as greves “a tempos letivos” para maximizar os danos nos alunos, arruinar a qualidade das suas aprendizagens, desestruturar a vida das famílias e reduzir ao mínimo os prejuízos próprios.

Neste cenário, podem colocar-se cinco questões, com breves apontamentos de hipóteses de resposta: podem ser revertidos todos os danos causados nos últimos longos anos? – Parece realisticamente impossível encontrar a varinha mágica de todas as soluções, a não ser num cenário de “efeito dominó” em toda a função pública. Podem prolongar-se indefinidamente greves que atentam de forma persistente contra os direitos básicos das aprendizagens dos alunos? – Podem, mas com danos gravíssimos no direito constitucional às aprendizagens. A escola pública de qualidade não estará a ser irremediavelmente destruída? – Evidentemente que sim, sendo paradoxal que em seu nome se esteja a cavar a sua morte. A imagem pública dos professores não estará a ser radicalmente afetada? – Temo que sim e todos irão perder com esta degradação da imagem.

Parece que vivemos sob o signo de um “jogo de soma nula”. Uma parte tem de ganhar e a outra tem necessariamente de perder. A negociação parece assemelhar-se a um jogo de imposição e do “tudo ou nada”. O “dar-se ao respeito” terá, provavelmente, de passar por exigências passíveis de serem faseadas no tempo. De compreender que terá de haver formas exigentes e inteligentes de ir recuperando direitos sem destruir os direitos dos outros. E, de parte a parte, ceder no que poderá ser, agora, acessório em nome de uma confiança que tem de ser restabelecida entre professores, alunos, famílias e comunidades. Em nome de um compromisso em torno de uma educação que se tem de resgatar do “efeito da bola de neve”.

É certo que temos de pugnar para que o “professor seja o primeiro de todos os ofícios”, como em tempos reclamou o sociólogo Pierre Bourdieu. Mas ser o “primeiro de todos os ofícios” tem também de significar o dever da responsabilidade ética em relação às crianças que nos estão confiadas. O dever de não cair na tentação de tudo querer e tudo exigir, cavalgando uma onda de oportunidade que se pode revelar trágica no seu possível “efeito bumerangue”. O dever de assumir um estatuto de autoridade que se distingue pelo ideal de compromisso, clarividência e de serviço público, num contexto particularmente crítico.

Embora duvide que o “bom senso” esteja naturalmente distribuído, seria bom para todos que deste conflito pudesse emergir um horizonte que afirmasse a dignidade e a liberdade profissional, o desenvolvimento de comunidades profissionais efetivamente ao serviço dos outros. E que alguma réstia de esperança pudesse (re)construir, neste tempo disfórico, a “alegria de ser professor”.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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