Apliquem-se quotas de emissão de luz para nos devolver a noite

Só através de regulamentação que preveja o estabelecimento de limites, quotas para a emissão de luz, conseguirá atacar-se o problema da poluição luminosa.

Foi notícia recente no PÚBLICO (21 de janeiro) o enorme aumento da poluição luminosa a nível mundial. Como resultado de um crescimento de cerca de 10% por ano, o brilho do céu noturno duplicou na última década. A este problema juntou-se uma nova ofensiva ao céu noturno, as constelações de satélites.

A perda do céu noturno representa o desaparecimento, não só, de um património intangível – um céu prístino estrelado, fonte inesgotável de conhecimento, de deslumbramento, ponto de contacto com a natureza –, mas também de um fator de sobrevivência para a biodiversidade. Numa lógica One Health, das Nações Unidas, de sobrevivência da humanidade.

Quando, à noite, se acende uma luz, aumenta-se inevitavelmente a concentração de fotões na atmosfera, ao longo do seu trajeto de dezenas ou centenas de quilómetros, fotões na sua grande maioria desperdiçados. Por isso, nenhuma solução pontual, local ou tecnológica resolverá, por si só, o problema da poluição luminosa.

De que vale, por exemplo, a luminária com o maior “controlo de poluição luminosa” de sempre, se ela própria é fonte de luz – logo, de poluição luminosa? Mesmo que essa luminária emita “pouca poluição luminosa”, duas emitem o dobro, milhares emitem milhares de vezes. Milhares de vezes “pouca” poluição luminosa é muita poluição luminosa. Ainda que haja luminárias melhores e piores, por este exemplo se vê que o problema não se restringe à qualidade da fonte de emissão. O problema está no somatório da emissão de luz.

E já não se trata apenas da iluminação pública, há cada vez mais fontes de luz a poluir que não servem para iluminar o espaço público, servem para assinalar, quais chamarizes, comércio, hotelaria, indústria, “ecovias”, publicidade, jardins, casas, fachadas de monumentos e mesmo prédios ou reabilitações modernas, que, aparentemente, não podem deixar de ser contemplados à noite.

Para resolver o problema da poluição luminosa, o enfoque tem de estar apenas na gestão de emissão do poluente – a luz artificial. Só através de regulamentação que preveja o estabelecimento de limites, quotas para a emissão de luz, conseguirá atacar-se o problema.

A sistemática ênfase na “eficiência energética”, sem a imposição concomitante de limites na emissão, tem sido um erro de aconselhamento a decisores. Num raciocínio semelhante ao anterior, se um LED é “eficiente”, qual é a “eficiência” do somatório de milhares, milhões deles? Passaram a usar-se dois, ou três, ou dez, quando um seria suficiente – ou nenhum... pois começaram, também, a instalar-se em locais onde a iluminação estava ausente, porque onerosa.

Por outro lado, tem-se aproveitado para emitir não a mesma, ou menos, mas sim mais luz do que antes. E como gastam “pouco”, ficam também ligados mais tempo sem, com isso, aumentar ou até reduzindo a fatura, face a gastos anteriores. Tudo isto está a acontecer. A “eficiência” por si só não tem utilidade, é um argumento vazio. Dissociada de limites às emissões e ao consumo, falha, porque tem o efeito de os promover. William Jevons explicou isso há mais de um século e meio.

No entanto, a degradação (e privação forçada) do céu noturno não se deve apenas a decisões erradas. Deve-se, sobretudo, à inação e ao desinteresse, consequência, em parte, do desprezo e desvalorização pelo ambiente natural que nos rodeia perante um deslumbramento tecnológico e de consumo que procura demonstrar-nos que a natureza é dispensável. António Guerreiro abordou o assunto nestas páginas (“A tirania da luz”, PÚBLICO, 08/09/2017).

Há, porém, atores cujas funções deveriam passar por estarem atentos e alertarem para todas estas armadilhas. Os decisores com responsabilidades nestes âmbitos, desde logo, mas também os cientistas que trabalham em áreas cuja fontes ou objetos de estudo se estão a esgotar rapidamente. O momento é de intervir.

O céu noturno continua a degradar-se drasticamente, quer pela poluição luminosa quer pelas constelações de satélites, milhares de satélites lançados em órbita baixa por empresas privadas, interferindo com a observação do céu noturno sem que haja qualquer regulação internacional, afetando a investigação científica e contribuindo para o aumento global do brilho do céu.

O apelo aos cientistas e os novos estudos relativos a estas temáticas, publicados agora no número de março da revista Nature Astronomy, são um novo alerta para a reposição do céu noturno de há umas décadas. Apela-se a uma regulação e a decisões urgentes que deixem de envolver os agentes poluidores como parceiros, mas sim como entidades que deverão sujeitar-se a um bem e desígnio maiores, o restauro da noite e da natureza.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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