O Governo descongela(?) as reformas

Fez bem o Governo em descongelar as reformas, começando na habitação. Há muito que a sociedade vive este flagelo entorpecida por promessas, quando se sabe que o autoritário mercado não as consente.

Do comboio em que viajo, avistam-se as habitações de muitos portugueses. São casas que se vão dispondo, camufladas com a paisagem, na beira de caminhos, estradas e carreiros.

Casas cobertas de musgos e bolores que cobrem as velhas tintas desmaiadas.

Muitas (demais) nem o reboco conseguiram vestir, ficando pelo tijolo alinhado pelo orçamento de carestia que deu origem ao sonho de uma vida: a habitação.

Outras agonizam, lentamente, abandonadas à ruína do tempo e da intempérie.

Outras ainda envergam símbolos e cores vivas e gosto de outros à laia de celebração do êxito de chegarem ao fim.

São quase sempre modestas e no interior adivinha-se o desconforto do frio húmido e insalubre.

Esta imagem cobre, indiferente, paisagens rurais, periurbanas e urbanas, ainda que com escalas diferentes.

Há muito que os cidadãos conquistaram o direito a uma vida digna e a habitação compatível.

Fez bem o Governo em descongelar as reformas, começando na habitação. Há muito que a sociedade vive este flagelo entorpecida por promessas repetidas quando se sabe que o arcaico e autoritário mercado não as consente, envergonhando e desprestigiando os decisores políticos.

O mercado não é nenhuma divindade nem goza de privilégio especial que lhe permita ser cruel com os cidadãos. Deve, isso sim, ser disciplinado/educado a viver em sociedade, trazendo-lhe o bem-estar como preconizava Adam Smith.

O programa Mais Habitação, tão esperado, assume algumas medidas mais de princípios e valores do que meramente económicas, financeiras ou fiscais.

Destacam-se duas: as limitações à propriedade imobiliária quando se destina a fins especulativos e a redução da presença do Estado no processo de licenciamento de construção.

A primeira – limitação do direito de propriedade – prometia um debate político vivo e participado sobre um direito à propriedade, tão sensível e estruturante da nossa vida coletiva. Infelizmente esse debate foi assumido apenas pelos atores com interesses sobre o imobiliário (da propriedade ao uso) e muitos, muitos, demasiados comentadores. É estranho que os agentes políticos, da esquerda à direita democráticas e com raríssimas exceções, tenham escolhido o argumentário enfadonho e banal da luta pelo poder, com o continuado bowling aos governos. Nem a oportunidade de afirmação e informação da sociedade dos seus ideários constituiu motivo suficiente para se afastarem da causa única: o poder sem ideias conhecidas e debatidas.

Esta ausência de opinião política já se tinha notado bastante aquando da exigência internacional da libertação das patentes para a produção de vacinas durante a pandemia ou quando se criou o conceito de lucro excessivo com origem na inflação. Foi penoso o embaraço liberal em reconhecer e integrar este conceito sem prejudicar a doutrina da legitimidade do lucro.

Torna-se cada vez mais ténue a expectativa da vontade política para a abordagem do tema do direito de propriedade, talvez remetida para o debate parlamentar. Ou para o entendimento do Tribunal Constitucional.

A segunda – redução da presença do Estado no processo de licenciamento – foi mais uma ocasião desperdiçada para se conhecerem os argumentos da permanente contestação da influência paralisante do Estado na sociedade. Quando a questão surge, provoca uma reação frouxa. Parece, afinal, que o Estado deve ter uma dimensão variável para ser gerida como instrumental na obtenção de resultados políticos e não sociais.

Fica, uma vez mais, a impressão, já antiga, que a reclamação de “menos” Estado não constitui preocupação estratégica, mas antes um pretexto de aquisição de vantagem na competição pelo poder, regularmente rotulado com o sufixo “melhor Estado”. Um tema desta magnitude no nosso modelo de sociedade fica reduzido a mais um slogan a juntar a tantos outros.

É com esta aridez, senão ausência, do debate e o desinteresse genuíno em envolver a sociedade na reflexão sobre o seu futuro em temas estruturantes que assistimos, desolados, a testes sistemáticos à resistência da democracia. Criou-se um vácuo político onde a pouca pressão é feita de vulgaridade do léxico e de vibrato de insulto, em mensagens curtas de prova de vida na memória do eleitor.

Seria tão importante conhecer ideias alternativas claras à proposta do governo. Conhecer propostas responsáveis sobre, por exemplo: Qual o papel da propriedade individual perante a urgência de soluções para as necessidades coletivas? A propriedade imobiliária pode passar de reserva de valor financeiro (para acorrer a dificuldades imprevistas das famílias) para instrumento especulativo, sem regulamentação? A “regulamentação” pode ser entregue ao mercado? É legitimo substituir a diversidade de ideais pela cartelização numa causa única: o poder? A intervenção do Estado deve ter uma geometria variável, adequada à alternância de interesses dominantes em cada ciclo económico ou social? O exercício político não deve obedecer a princípios éticos inabaláveis? Deve continuar-se a “esquecer” os jovens nas respostas a estes desafios quando a decisão política de hoje irá comprometer o seu futuro? Os jovens estão preocupados com a propriedade da habitação ou com o seu uso, face à mobilidade de que dispõem e, porventura, pretendem?

As ideias não são bens cujo preço ou oferta possam oscilar segundo as regras de mercado. Em benefício da democracia e da coragem das reformas.

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Comentar