Por não terem contratos de arrendamento, sobraram bolsas para ajudar estudantes deslocados

A Fundação Eugénio de Almeida tinha orçamento para mais bolsas. Não foram atribuídas porque estudantes não têm contratos nem recibos que comprovem que vivem fora do agregado familiar.

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As bolsas variam entre os 100€ e os 150€ por mês Nuno Ferreira Santos

A Fundação Eugénio de Almeida, de Évora, atribuiu, no início de Março, 32 bolsas de alojamento para ajudar os estudantes alentejanos deslocados a fazer face às despesas de habitação. Contudo, quase metade das bolsas que tinham ficaram por dar: por falta de contratos de arrendamento, “um número significativo” de possíveis bolseiros ficou de fora, apesar de haver “dotação orçamental” para ajudar mais.

Não se sabe ao certo quantas foram as candidaturas não aceites por não incluírem o contrato de arrendamento do alojamento, ou quantos estudantes desistiram depois de verificar o regulamento em que se lia que era preciso um comprovativo válido de pagamento de renda para receber o apoio. O que se sabe é que o número de bolsas que ficaram por atribuir é “praticamente equivalente às bolsas [que de facto foram] atribuídas”, de acordo com um dos assessores da Fundação Eugénio de Almeida.

Ainda de acordo com a mesma fonte, sabe-se que o número de interessados era muito maior porque os estudantes chegaram a preencher o formulário, mas não anexaram um contrato de arrendamento ou recibos de renda. As candidaturas foram analisadas, mas, sem provas de que estão deslocados em período escolar, nada feito: não são elegíveis para a bolsa.

“O investimento total deste apoio é de 51.150 euros”, lê-se um comunicado enviado ao P3. Este foi o primeiro ano que esta fundação deu um apoio específico para alojamento de estudantes deslocados. Porém, há vários anos que distribui bolsas académicas, de investigação e mérito académico.

É um sinal claro que o mercado da habitação está “desregulado”: a secretária-geral, Maria do Céu Ramos, sublinha, em comunicado, que este é um “sintoma” de um mercado “que penaliza, sobretudo, os estudantes economicamente mais vulneráveis”.

Para as bolsas de alojamento, são elegíveis alunos do 1.º ou 2.º ciclo do ensino superior, que estudem em instituições em território nacional, com residência oficial no Alentejo central ou nos concelhos de Alcácer do Sal, Avis, Benavente, Campo Maior, Coruche, Elvas, Fronteira, Monforte e Sousel ou na freguesia de Montargil. A necessidade de apoio financeiro deve estar comprovada. Depois, é preciso preencher um formulário com 34 perguntas e anexar alguns documentos, incluindo o contrato de arrendamento de alojamento ou um recibo de renda.

Os valores atribuídos são estipulados no regulamento: ou 100 ou 150 euros por mês para os estudantes elegíveis. O montante varia consoante os rendimentos do agregado de cada aluno e a bolsa tem a duração de 11 meses — de Março a Janeiro.

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Bruna Jardim vive há mais de dois anos na mesma casa, mas nunca teve contrato de arrendamento

Casas sem contrato: “Só um estudante aceitaria estas condições”

Esta bolsa é destinada apenas a estudantes alentejanos, mas a situação é transversal a todo o país: entre os estudantes deslocados, é bastante comum que não existam contratos de arrendamento. Num inquérito realizado pela Federação Académica do Porto, em Outubro de 2022, apurou-se que 52% dos estudantes deslocados não tinham qualquer contrato ou recibos de renda. Outros 17%, ainda não tinham encontrado casa na altura do inquérito. E alguns ponderavam mesmo abandonar o ensino superior por não conseguirem suportar o esforço financeiro.

Bruna Jardim, de 20 anos, é estudante na Universidade do Porto e vive na mesma casa desde que saiu da Madeira para estudar Ciências da Comunicação. Está no 3.º ano da licenciatura e aceitou sempre as condições que lhe impunham porque “há muito poucos sítios [que celebram] contrato”. Encontrar esta casa foi uma sorte. Na verdade, admite, o contrato até existe, mas nunca foi legalmente registado e por isso não tem validade.

“Para o senhorio ter o mesmo lucro, teria de pagar mais” 100 ou 150 euros, por isso não ter deveres nem direitos passa a ser admissível. Dá-se bem com os colegas de casa e sente que, enquanto precisar, vai ter onde ficar, pelo menos durante a licenciatura.

Ana (nome fictício), de 21 anos, é açoriana e vive no Porto há três anos. Sempre teve contrato e recibos de renda até que, há uns tempos, a senhoria decidiu que queria vender o apartamento onde vivia. Hoje, sabe que não o vendeu – só aumentou a renda e mudou os inquilinos. Ana precisou de uma solução rápida e encontrou-a à porta de casa: no mesmo prédio, outro apartamento, o mesmo preço, mas sem contrato. Todos os meses paga a renda em dinheiro e não há sequer um papel que prove que vive ali. À semelhança de Bruna Jardim, vive numa casa só com estudantes porque, diz, “só um estudante aceitaria estas condições”.

Não tenho contrato nem recibos de renda. O que devo fazer?

Bernardo Alves, do movimento portuense Habitação Hoje!, sublinha que é importante que o inquilino saiba que esta situação é ilegal. Sediada no Porto, esta organização defende “o cumprimento radical do direito à habitação”, trabalhando junto das populações e acompanhando de perto pessoas em situações vulneráveis de habitação.

Se não houver um contrato válido que comprove que uma pessoa está a arrendar um quarto ou uma casa, não há qualquer tipo de protecção legal — nem para o inquilino, nem para o senhorio. Os contratos verbais não existem aos olhos da lei. Bernardo Alves conta que há casos em que as pessoas recebem em casa apenas um papel que as informa do valor da renda e das restantes despesas.

Na teoria, o que se deve fazer é “denunciar o senhorio às Finanças” por crime fiscal. Mas quase ninguém o faz, porque “a probabilidade de ser despejado é alta”. O caso complica-se porque “não há nenhuma lei que diga que um senhorio não pode despejar quem o denunciou, continua. E, por isso, “vivem num medo constante” e vão pagando o dinheiro que lhes é pedido no final do mês. Mesmo que chegue numa folha pouco credível.

Texto editado por Inês Chaíça

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