Há dias nevou, no sábado vão estar 27 graus. Bem-vindos ao futuro que criámos

A Catalunha, que viveu no ano passado a pior seca dos últimos 100 anos, está em estado de “seca grave” há mais de 30 meses. Quando algo dura 30 meses já não é um fenómeno, é permanente.

Estamos no início do mês de Março. É uma e meia da tarde e está mais um dia de sol. Como é habitual, chego em cima da hora ao clube de ténis rodeado de floresta, onde muitos dias aproveito a hora de almoço para jogar padel. Depois de tantos anos de ténis quando era mais novo, e agora longe do mar com ondas, este desporto de invenção recente tomou mesmo a minha vida desportiva.

Como sempre, vou direto ao balneário antigo e austero, visto o equipamento e vou a correr para o court. Além da raquete e toalha, nunca falta a garrafa de água reutilizável, que encho num bebedouro a meio do trajeto.

Mas, desta vez, foi diferente. O velho bebedouro numa coluna de tijolo alaranjado, que provavelmente está naquele sítio desde 1967 (o ano em que foi fundado o clube), está fechado e sem torneira. Vou a correr de novo ao balneário para encher a garrafa e quando chego ao court pergunto aos meus parceiros:

“O que se passa com o bebedouro?”

“Não viste o comunicado? Estamos em seca.”

Este episódio, que podia acontecer num futuro distante, ou em pleno mês de Agosto em regiões áridas, aconteceu esta segunda-feira, perto de Barcelona.

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Espanha testemunhou em 2022 o quarto ano mais seco desde 1961 Miguel Manso

A Catalunha, que viveu no ano passado a pior seca dos últimos 100 anos, está em estado de “seca grave” há mais de 30 meses. Quando algo dura 30 meses já não é um fenómeno, é permanente. Os reservatórios ou barragens que abastecem as cidades de Girona e Barcelona estão a 28% da sua capacidade e foi decretada uma fase de “seca excecional”.

As restrições são muitas e afetam 6 milhões de pessoas, desde o encerramento dos bebedouros públicos ou proibição de regar jardins e relvados, à restrição da limpeza das 224 cidades afetadas à utilização de água não potável ou à proibição da utilização de piscinas desmontáveis, à exceção dos centros educativos. Também a agricultura é afetada, com uma redução obrigatória de 40% da utilização de água para regadio.

O que está a acontecer agora na Catalunha pode e (provavelmente) vai acontecer em muitos outros lugares do sul da Europa, mais cedo do que pensamos.

Em Portugal temos agora realidades distintas, segundo os dados da Agência Portuguesa do Ambiente, enquanto o interior e Norte do país parecem estar com bons níveis de armazenamento, com Tejo, Douro e Guadiana acima dos 80% de capacidade, a região do sudoeste apresenta valores preocupantes (abaixo dos 40%) com o Barlavento Algarvio numa situação dramática: um valor inferior a 20% e que se estende há quase dois anos.

Se aos prolongados períodos de seca juntarmos o aumento da frequência e intensidade de ondas de calor temos a receita perfeita para a tragédia. Nos últimos 10 anos, houve três em que a catástrofe natural que causou maior número de mortes em todo o mundo foram ondas de calor, duas na Europa (2019 e 2022) e uma na Índia (2016).

Sempre soubemos que “água é vida”, mas hoje é mais importante que nunca relembrar. A disponibilidade (ou escassez) de água encontra-se na intersecção entre alguns dos principais desafios que enfrentamos como sociedade: a agricultura e a forma como produzimos alimento, a produção de eletricidade e redução da dependência energética, as alterações climáticas e o que fazemos para as conter e claro, a disponibilidade de água potável.

Na semana passada nevou, no sábado vão estar 27 graus. Bem-vindos ao futuro que criámos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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