Depois dos sismos, o terramoto político na Turquia

O risco de ter a cada dia um novo acontecimento violento ou tragédias é simples: uma banalização que normaliza a corrosão das instituições e os limites às liberdades civis.

Foto
Depois dos sismos, o terramoto político na Turquia Reuters

Não há nada mais político do que a forma como as pessoas morrem.

Talvez esta não seja uma afirmação que se possa aplicar, em sentido estrito, ao campo político de todos os contextos geográficos do mundo. Mas é certamente uma afirmação que se aplica à Turquia de hoje.

O terramoto que abalou uma enorme região no sudeste do país, mas também o território sírio limítrofe, quando eram 4h17 do dia 6 de Fevereiro já se tornou o maior desastre natural da Turquia, em termos de vítimas mortais, nos últimos cem anos. Os últimos dados oficiais registam mais de 45 mil mortos na Turquia e se juntarmos a vítimas mortais do lado sírio, o número ultrapassa os 50 mil mortos.

Os desastres naturais na Turquia, especialmente os sísmicos, poderão estar na origem de uma conhecida e repetida expressão no país: Coğrafya kaderdir que se traduz para ‘geografia é destino’. Variantes da expressão, que tem uma conotação religiosa de providência divina, foram usadas por responsáveis políticos do governo turco para sacudir o enorme coro popular de críticas que se gerou à volta da tardia resposta de emergência e salvamento às vítimas do terramoto.

Na primeira declaração pública a partir da região afectada, o actual presidente turco diria não ser possível estar preparado para tão grande desastre e que falaria de forma diferente se a responsabilidade não fosse da "autoridade acima dele", em clara referência religiosa. O argumento seria rapidamente usado para uma campanha nas redes sociais organizada pelo ministério da comunicação que aqui satiricamente se compara ao ministério da verdade orwelliano. A campanha tem o slogan Asrın felaketi, em português "tragédia do século", no sentido de esvaziar a responsabilidade política do governo perante uma inevitabilidade natural ou divina.

Da ordem dos engenheiros, arquitectos e urbanistas (TMMOB), ostracizados e desprovidos da sua autoridade constitucional pelo governo desde os protestos Gezi em 2013, viria a resposta Asrın ihmali, ou seja, "negligência do século". Um slogan que intitula um conjunto de documentos de informação ao público sobre como sucessivos programas de amnistia a construções ilegais em massa, usados de forma populista e em momentos pré-eleitorais pelo AKP (partido no poder nos últimos 20 anos), são responsáveis, de facto, pelo colapso de milhares de edifícios e consequentes vítimas mortais.

Mais uma vez, na Turquia não há nada mais político do que a forma como as pessoas morrem.

A melhor forma de o explicar é através de uma música de um dos mais populares rappers turcos (entretanto exilado na Alemanha). A música em questão, Olay, repete várias vezes o verso Her gün yeni olay (a cada dia um novo acontecimento). E se é óbvio que todos os países têm acontecimentos novos todos os dias, os da Turquia são marcados por uma agenda política de ódios e divisões acirradas que o autoritarismo do AKP tem vindo a semear para colher a perpetuação no poder.

O risco de ter a cada dia um novo acontecimento violento (repressão e prisões políticas por um lado) ou tragédias (o recente terramoto) é simples: uma banalização que normaliza a corrosão das instituições e os limites às liberdades civis. Em última análise, isso também corrói a nossa capacidade de entender o que somos colectivamente numa sociedade. Quem vive na Turquia sente que essa corrosão confunde as linhas que separam o normal do anormal; Nerde ne anormal artık bana gelir doğal ("o que quer que seja anormal já é normal para mim") é outro verso da mesma música.

O dia 6 de Fevereiro trouxe um choque colectivo cujas réplicas se têm manifestado no quotidiano turco de tal forma que as linhas entre normal e anormal começam de novo a assumir o devido lugar. Um lugar onde nem o destino da geografia nem o argumento da providência divina são mais aceitáveis. Depois do geológico poderá seguir-se um terramoto político.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários