Tiago Pitta e Cunha: o novo tratado do alto-mar é uma “mudança quase filosófica”

O presidente executivo da Fundação Oceano Azul, Tiago Pitta e Cunha, diz que o acordo alcançado para um tratado sobre a biodiversidade no alto-mar é “histórico”. Diz também que não é o “acordo ideal”.

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Tiago Pitta e Cunha, presidente executivo da Fundação Oceano Azul Daniel Rocha

Ao fim de mais de duas décadas e meia de conversações e negociações, chegou-se finalmente, no último domingo, a um acordo do texto de um tratado internacional sobre biodiversidade no alto-mar no âmbito das Nações Unidas. Por outras palavras, acordou-se um tratado vinculativo para a biodiversidade do oceano que fica para lá das jurisdições nacionais e em relação à qual havia um vazio legal até agora. Esta zona do oceano é aquela que pertence a toda a humanidade, é a nossa casa comum.

Para Tiago Pitta e Cunha, jurista especializado em assuntos do mar e presidente executivo da Fundação Oceano Azul, “a grande conquista deste tratado é permitir que haja a criação de áreas marinhas protegidas no alto-mar”.

É agora necessária a ratificação por parte de 60 países para que este tratado entre em vigor. Irá colmatar um vazio legal da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (de 1982), que deixou de fora os recursos vivos e genéticos do alto-mar.

Qual é a importância de haver finalmente um tratado internacional sobre a biodiversidade do alto-mar?
É uma importância histórica. É histórica porque é a decisão multilateral da comunidade internacional – dos Estados-membros das Nações Unidas – sobre o oceano mais importante tomada no século XXI. O arrastar das negociações era, para mim, a prova cabal de como existe um enorme vazio de liderança na questão dos oceanos a nível internacional.

Em 2002, começavam as primeiras conversas sobre a necessidade de suprimirmos uma lacuna da Convenção do Direito do Mar das Nações Unidas, que era a regulação dos recursos vivos do alto-mar. Na Convenção das Nações Unidas sobre o Mar, apenas os recursos minerais estão cobertos fora da jurisdição dos Estados costeiros. Havia a grande preocupação sobre o que fazer com os chamados “recursos genéticos do oceano” – portanto, os recursos vivos, os microrganismos e também as pescas. O que se pretende com um tratado como este é permitir que haja uma estrutura de governação que leve à preservação, à conservação ou até ao restauro desta área do alto-mar, que tem vindo a ser delapidada pela sobrepesca que algumas nações – falamos de seis ou sete – conseguiram desenvolver nesta área no alto-mar. Se me perguntar se é o acordo ideal, digo que é o acordo possível.

E é o acordo possível porquê?
Porque faltam ainda dentes.

Disse dentes?!
É uma expressão inglesa. Um acordo, para ser eficaz, tem de ter dentes para poder morder, digamos assim. Aqui prevê-se a criação de uma comissão de ciência e técnica, mas há questões que vão ser de operacionalização complicada. Vários especialistas dos oceanos entendem que a operacionalização de uma governança sobre o alto-mar não conseguirá desenvolver-se exclusivamente a partir deste acordo e que seria necessário reforçar algumas áreas do acordo. Neste momento, acho que é mais positivo haver um acordo do que continuarmos num impasse, que estava a gerar uma verdadeira neurose no que diz respeito à decisão sobre os problemas do oceano.

O oceano sofre uma crise profunda. Mas os problemas que constituem essa crise não estão a ser ainda mitigados. Na maior parte, continuam a ser agravados pela falta de liderança e pela falta de decisões sobre soluções para esses problemas. Por isso é tão positiva a dinâmica que este acordo pode trazer, principalmente a dois anos da próxima Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano, que vai ter lugar em Nice.

Refere-se a que problemas do oceano em concreto?

Na perspectiva da Fundação Oceano Azul, o problema que nos preocupa mais é a criação de uma rede de áreas marinhas protegidas de larga escala no alto-mar. Neste momento, para mim não é ainda claro como o vamos conseguir.

O oceano não tem um IPCC [Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas das Nações Unidas]. Não há um painel intergovernamental de cientistas para o oceano. É uma das lacunas das estruturas de governação do oceano que a Fundação Oceano Azul tem considerado importante colmatar. Sabemos que importância tiveram os relatórios do IPCC para a decisão política sobre o clima. Esse painel intergovernamental de cientistas – que conseguiu gerar liderança política no clima e hoje se traduz em acções climáticas nacionais – não existe ainda nos oceanos.

Está a propor um painel similar ao IPCC só para o oceano?
Sim, defendo isso, e não apenas no âmbito do alto-mar. Era importante tirar-se partido da Conferência do Oceano das Nações Unidas de 2025 para discutir a criação de mecanismos como esse.

No âmbito deste tratado, prevê-se a criação de uma comissão técnico-científica para fazer esse papel no âmbito do alto-mar. O que se aplaude, mas para mim não é suficiente para que o fosso entre acção climática e acção oceânica se reduza. O que me continua a preocupar, enquanto especialista em matéria de oceanos, enquanto advogado dos oceanos, é que encontremos um plano. Esse plano do clima chama-se Acordo de Paris: apesar de não estar a ser cumprido como gostaríamos, está a gerar progressos. Ainda não temos nenhum plano para o oceano.

Não é este tratado para o alto-mar que é um plano para [todo] o oceano. Este tratado vai ser importante para preservarmos uma área que, ainda por cima, não afecta praticamente nenhum Estado-membro das Nações Unidas, a não ser alguns que, de forma abusiva, fazem a sobreexploração os recursos que pertencem a toda a humanidade através de pescas desregradas.

O que me parece importante, e devo aplaudir, é que até agora os recursos genéticos e os recursos biológicos – portanto, os recursos vivos do alto-mar – estavam à mercê de quem os apanhasse. O que é vergonhoso – sabendo nós o estado em que está o planeta e o valor que a natureza vai ter para nos salvar desta crise ambiental profunda – é ainda se tolerar que essa natureza seja res nullius. Que não pertence a ninguém, que é de quem a apanhar. Era isso que estava a acontecer. É isso que muda com este tratado. Isso é importantíssimo, é uma mudança quase filosófica.

Quais são os principais pontos do tratado? Que tipo de instrumentos de gestão vão ser criados para assegurar os tais “dentes” na partilha dos recursos genéticos do alto-mar?
Ainda há vários problemas de redacção e vai haver uma sessão para fechar questões de redacção do texto e de tradução da versão inglesa. Ainda há muito trabalho a fazer no que diz respeito à criação de fundos de financiamento que permitam o desenvolvimento da chamada “capacitação” dos países menos desenvolvidos. Não tenho dúvidas de que, tal como na agenda do clima, na agenda da conservação do oceano a questão das compensações financeiras vai ser muito importante. Até agora, os Estados que não tinham a capacidade financeira e tecnológica para usufruir de benefícios desses recursos genéticos e biológicos não tinham nenhum direito que lhes assistisse. Com este tratado, têm um direito que lhes assiste de poder ter também esses benefícios.

Será necessário vir a desenvolver efectivamente alguns aspectos deste acordo no futuro para poder torná-lo exequível nesse campo. Nenhum país beneficia neste momento dos recursos genéticos ou biológicos do alto-mar. Aliás, ainda poucos países beneficiam sequer desses recursos nas suas áreas de jurisdição nacional. Esta é a grande aposta.

É fundamental que a distribuição dos benefícios dos recursos genéticos seja tratada com equidade. Mas neste momento não é essa a questão urgente. A questão urgente é efectivamente pôr termo à delapidação dos recursos vivos pesqueiros do alto-mar através de áreas marinhas protegidas. É aqui que nós nos regozijamos com este tratado. Na minha perspectiva, a grande conquista deste tratado é permitir que haja a criação de áreas marinhas protegidas no alto-mar e, com isso, aumentar a minha quota de optimismo sobre o “30 por 30”, que é chegarmos a 2030 com 30% da Terra e 30% do mar em áreas protegidas. Esta foi a decisão tomada na COP15 [conferência das partes] da Convenção da Biodiversidade, que terminou no final do ano passado. A humanidade assumiu, perante as próximas gerações, chegar a essa meta de 30%. A superfície do alto-mar é dois terços do oceano.

A criação de áreas marinhas protegidas no alto-mar fará parte dos mecanismos de gestão. O que está no tratado para operacionalizar essa gestão – ainda os tais dentes? Sem essa parte, é um documento sem eficácia.
Tem alguma eficácia, porque tem alguns dentes. Acho que não terá toda a eficácia que nós gostaríamos que tivesse. O que acho fundamental é acabarmos com o impasse e termos uma decisão significativa tomada sobre uma área tão importante do planeta como é a do alto-mar. O texto que foi assinado é o texto possível. Há quem ache que responde a um mínimo denominador comum e que não vai conseguir resolver os problemas. Para mim, a prioridade máxima neste momento é conseguir que este acordo entre em vigor e que um grupo de países de vanguarda do oceano, onde Portugal obviamente se inserisse, leve a uma ratificação super-rápida do acordo nos parlamentos nacionais, para que em Nice possa em simultâneo decorrer a primeira COP do tratado do alto-mar.

Que papel vai ter a comissão técnico-científica que mencionou?
Teria um papel essencial de conseguir, através da ciência disponível, a definição das zonas do alto-mar que devem ser áreas marinhas protegidas e de como se devem interligar, sob pena de elas não terem qualquer eficácia. Grandes espécies emblemáticas que habitam no alto-mar são migratórias, necessitam de transitar de uma área marinha protegida para outra área marinha protegida. Essa comissão vai ter um papel muito importante aí.

Quais foram os principais entraves para estas negociações terem tido um impasse durante tanto tempo?
Foram muitos entraves. O debate Norte-Sul sobre a distribuição dos benefícios dos recursos genéticos foi aquele que criou sempre mais desconfiança. Mas também começou a haver nos últimos tempos, principalmente desde a guerra na Ucrânia, um impasse geopolítico grande no sistema multilateral. Aliás, surpreende-me que quer a China quer a Rússia tenham tido uma posição que permitisse fechar este acordo, e também já tinham permitido o acordo para a negociação dos plásticos que teve lugar em Nairóbi no ano passado.

As últimas duas grandes decisões multilaterais de relevo para o planeta estão ligadas ao oceano: a decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas para o Ambiente, em Nairóbi, na Primavera de 2022, de começar uma negociação de um tratado sobre a poluição de plástico. O mar é o principal prejudicado por essa poluição. E agora a decisão do tratado do alto-mar. E as duas foram possíveis, não obstante vivermos num mundo bloqueado do ponto de vista geopolítico.

E como é que interpreta isso?
Da China, acho que há uma vontade de contribuir responsavelmente para não agravar o problema nas próximas gerações. Julgo que a Rússia tem, neste momento, uma certa vontade de querer agradar a alguns países do Sul.

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