Lemos muito mal o mundo, e dizemos, depois, que ele nos engana

Texto e imagem valem por si só. Adoro textos completos na sua incompletude. E fotografias desfocadas ou borradas como uma aguarela.

Foto
DR

1.

Um amigo com quem trabalho e a quem prometi enviar, sempre que possível, uma fotografia para ilustrar o texto, surpreendeu-me no início desta semana com uma pergunta:

– O que te acontece primeiro, o texto ou a foto?

– É como calha – respondi prontamente, sem ter a mínima lembrança de ter alguma vez pensado nisso. – Mas é mais fácil encontrar um texto para explicar uma fotografia do que uma fotografia para ilustrar um texto – concluí naquele tom com que decretamos certezas sem as ter.

No jornal onde trabalhei mais de 20 anos, ouvi dizer muitas vezes que não há notícia sem imagem para ilustrar. Nunca concordei. Desde quando é que as palavras precisam de imagens para as ilustrar? Será possível uma imagem representar integralmente o que se escreve? Ou o inverso: as palavras descreverem absolutamente o que se vê? Percebo a intenção e a lógica, não entendo a obrigatoriedade.

Texto e imagem valem por si só. Adoro textos completos na sua incompletude. E fotografias desfocadas ou borradas como uma aguarela.

2.

“A visão vem antes das palavras. A criança olha e vê antes de falar. Mas isto também é verdade num outro sentido. É a visão que estabelece o nosso lugar no mundo circundante. Explicamos o mundo com palavras, mas as palavras nunca podem sobrepor-se ao facto de estarmos rodeados por ele. A relação entre o que vemos e o que conhecemos nunca está estabelecida de uma vez por todas. Todas as noites, vemos o pôr-do-sol. Sabemos que a terra gira à sua volta. No entanto, o conhecimento, a explicação, nunca corresponde completamente à visão. O pintor surrealista Magritte comentou esta lacuna sempre presente entre as palavras e a visão numa pintura intitulada A Chave dos Sonhos”, escreve John Berger em Modos de Ver (1972).

A Chave dos Sonhos, da autoria de René Magritte (1898-1967), designa um conjunto de pinturas em que o pintor surrealista belga explora, numa abordagem mista imagem-palavra, sobre a mesma tela, a combinação de um objeto e de uma palavra que nada têm a ver um com o outro.

3.

Freguesia de Arroios, quarta-feira, por volta do meio-dia. Caminho pela rua, olhando para todo o lado e para toda a gente à procura de incoerências no cenário. Quase não se vê ninguém, talvez porque está muito frio. No entanto, ao sol está-se muito bem e eu caminho devagar, com calma, sem pensar em nada a não ser no que vejo. Desfrutar da aleatoriedade. Isto, e pelo menos dois litros de água por dia, é das coisas mais benéficas que podemos fazer pela nossa saúde. Assim tenhamos vontade e disciplina para o realizar, que tempo sempre se arranja.

Olho para cima.

(“Queres ver coisas que nunca viste, olha para cima”, recomendou-me numa ocasião um amigo com quem trabalhei muitos anos enquanto apontava para o topo da fachada de um prédio devoluto no Bairro Alto. Pasmei. Fazia aquele caminho todos os dias há mais de dez anos e nunca tinha reparado no pequeno altar com uma santinha.)

Levo a máquina fotográfica pendurada ao pescoço. Temo que o instantâneo se esfume e ligo-a o mais depressa que consigo. Aponto e disparo. Um homem que caminha na minha direção olha para mim com ar desconfiado e ameaça denunciar-me. Sorrio e pergunto-me a quem me denunciaria.

4.

Atente, por favor, o estimado leitor na fotografia que acompanha este texto. Imagino que a sua atenção se dirija imediatamente para a janela, mais exactamente para o tronco de uma pessoa sem cabeça, certo? Será um homem ou uma mulher? Não consigo decidir-me. Podemos ainda especular que não se vê a cabeça do indivíduo porque este tem o queixo colado ao pescoço enquanto olha para um telemóvel. Não condenemos. Podia ser um de nós.

Desvie agora, por favor, a sua atenção para aquilo que circunda a janela, em concreto para o emaranhado de fios. Como enumerá-los? Como podemos ser rigorosos na descrição desta imagem? “Podemos sempre contar os fios”, alguém dirá. Boa sorte. Eu acho que ficaremos sempre aquém do que vemos.

5.

“Um olhar vale mil palavras.” O autor desta frase foi o publicitário Fred R. Barnard, que a utilizou, a 8 de dezembro de 1921, para fazer propaganda à utilização de imagens nos comboios para fins publicitários. A piada: o anúncio não tinha uma única imagem, era só texto.

Uma década mais tarde, Barnard publicou novo anúncio em que se lia: “Uma imagem vale mais do que mil palavras”, frase posteriormente atribuída a Confúcio. Todavia, desta vez, Barnard utilizou a “imagem de um cartaz afixado nos caminhos-de-ferro para explicar como uma mensagem comercial podia ser mais expressiva, chegar mais depressa às pessoas e ser mais fácil de reter na memória caso fosse expressa através de imagens.

O cartaz mostrava um miúdo com uma bolacha e anunciava um fermento químico. Barnard argumentava que nenhum meio de comunicação social poderia fazer uma propaganda tão eficaz da imagem do contentamento do miúdo como o cartaz nos caminhos-de-ferro”, explica Helge Hesse em A História do Século XX em 50 Frases.

Mais à frente, o autor alemão acrescenta: “O poder das imagens viu-se aumentado a partir de meados do século XX graças à televisão. A consequência mais empobrecedora disto é o facto de, em geral, nos meios de comunicação social se ter praticamente deixado de falar de qualquer acontecimento do qual não existam imagens, quanto mais não seja porque as câmaras não tiveram oportunidade de as gravar.”

6.

Imagens indescritíveis.

Palavras que nos levam a lugares impossíveis de ilustrar por imagens.

A liberdade da indefinição. Tão bom.

“Lemos muito mal o mundo, e dizemos, depois, que ele nos engana”, disse Rabindranath Tagore.

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