Turismo: o Algarve em saldo, à custa do ambiente e da população local

Ironicamente, os próprios investidores anunciam um dos novos resorts como “o último Algarve”.

Durante os anos 80, um boom imobiliário insaciável destruiu os mais belos lugares ao longo das praias e da natureza única do Barlavento algarvio, com monstruosos edifícios hoteleiros. As consequências deste “desenvolvimento” eram já bem visíveis na vizinha Espanha, mas as lições não foram aprendidas e esta costa única foi betonada e arrasada.

Várias décadas depois, nada mudou, como demonstra o excelente artigo "Mais 11 mil camas, entre Vilamoura e Lagos, vão surgir em zona de construção proibida", de Idálio Revez e Daniel Rocha. A ganância insaciável dos investidores e fundos imobiliários está a betonar os últimos redutos livres, até no limite da legalidade. Ironicamente, os próprios investidores anunciam um dos novos resorts como "o último Algarve".

Tudo é feito com aprovação e forte encorajamento de políticos ao nível e nacional, bem como de entidades como a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve, o Instituto da Conservação da Natureza e Florestas e a Agência Portuguesa de Ambiente.

Os investidores, em geral empresas estrangeiras, só obtêm lucros chorudos por não terem de pagar os danos colaterais desta maciça impermeabilização do solo e ocupação da paisagem. A destruição ambiental, o consumo exponencial de água, a poluição, o ruído e os resíduos produzidos não entram em nenhuma contabilidade, são externalidades.

É o casamento perfeito: o lobby imobiliário agarra todos os terrenos possíveis, as autarquias locais arrecadam receitas fiscais e tudo fazem para atrair ainda mais turistas. Um círculo vicioso da destruição.

Para compensar alguns dos custos do turismo, mais de 160 destinos turísticos europeus cobram uma taxa turística e utilizam as receitas para garantir as infra-estruturas turísticas e a preservação de monumentos e dos recursos naturais.

No Algarve – que, segundo o Barómetro do Custo de Férias do Reino Unido, é o segundo destino "sol e praia" mais barato da Europa –, a introdução de tal taxa foi discutida durante anos, tendo sido agora finalmente aprovada, contra a oposição do lobby hoteleiro e do turismo (AHETA). Porém, a sua dimensão é minimalista, não passando de 10 euros no total de cada estadia, dos quais 10% reverterão para um fundo conjunto, destinado, por exemplo, a atrair novas rotas aéreas para o Algarve e realizar eventos internacionais, como a Fórmula 1, segundo o presidente da AMAL, comunidade intermunicipal do Algarve.

Os restantes 90% da taxa também não escapam aos lobbies, sendo geridos em comissões concelhias, onde estarão representados os autarcas e o sector privado, mas onde não haverá representação da sociedade civil.

Entretanto não se poupam esforços para atrair mais turistas; um exemplo bombástico é campanha publicitária de custos inimagináveis da agência estatal portuguesa Turismo de Portugal nos EUA, onde Portugal já é percepcionado como a “Califórnia europeia”.

Em que medida o actual turismo beneficia as pessoas que vivem no Algarve, em termos de qualidade de vida e prosperidade? É verdade que o estudo Restur, recentemente publicado pela Universidade do Algarve, conclui que a maioria da população local tem uma atitude positiva em relação ao turismo. Porém, este resultado não surpreende, sabendo-se que 2/3 dos entrevistados dependem economicamente do turismo.

Além disso, o inquérito foi realizado em 2021, o segundo "ano covid", altura em que as pessoas nada mais desejavam do que voltar a ter emprego. O que não foi salientado nos títulos dos media é que o estudo também concluiu que a maioria dos inquiridos se queixa de que, devido ao turismo, o custo de vida (alimentação, aluguer, transporte, vestuário, etc.), aumentou significativamente e que estão muito insatisfeitos com as infra-estruturas e os serviços sociais prestados pelo Estado, tais como a Educação e a Saúde. O que não é de admirar, quando, para muitos algarvios, o hospital público mais próximo (são apenas três) está a mais de 50km de distância e os centros de saúde estão fechados aos fins-de-semana.

Enquanto isso, o portal estatal Visit Portugal, promove um "Turismo clínico" nos seguintes termos: “Portugal dispõe de um sistema de saúde de alta qualidade e competitivo, com equipamentos e soluções tecnológicas de vanguarda e uma rede hospitalar moderna, servida por profissionais altamente qualificados". De facto, hospitais e clínicas privadas crescem como cogumelos para fazer jus ao “sistema de saúde de alta qualidade e competitivo”, mas com custos inacessíveis para grande parte da população.

A região é constantemente deixada para trás, até porque pouco peso tem nas decisões a nível nacional, enquanto a sua forte contribuição para o PIB é muito bem-vinda a nível nacional. É surpreendente que a população local não se revolte, exigindo a sua quota-parte dos lucros do turismo na região, através de empregos dignos, habitação acessível, infra-estruturas e serviços de saúde de qualidade providenciados pelo Estado. Pelo contrário, rende-se à sua sorte, acabando muitas vezes na precariedade (basta ver que as filas em frente ao Refoof se tornam cada vez mais longas), sendo obrigada a mudar-se para a periferia por não poder pagar as rendas nos centros.

Outras facetas deste mega-sector da economia nacional não são menos problemáticas: o aumento do consumo de água, por exemplo, numa região de reconhecida escassez. Este aumento do turismo e da agricultura de regadio são verdadeiros atentados, face às alterações climáticas.

Cada vez mais países percebem que a limitação do número de turistas e a adaptação da oferta às condições locais é inevitável para evitar danos irreversíveis. Mas Portugal continua a apostar na exploração ilimitada do Algarve, destruindo a singularidade do seu ecossistema e pondo em risco a coesão social com a criação de uma sociedade composta por três classes: os ricos, na sua maioria turistas estrangeiros de curto ou longo prazo, que beneficiam de todos os privilégios; a população local, com um rendimento insuficiente, encarregue dos serviços aos turistas e aos residentes não habituais; e os migrantes asiáticos ou da CPLP, que executam os trabalhos mais duros e precários.

A excessiva dependência do sector do turismo mostrou-se fatal nos dois anos da pandemia. E o quinto relatório do IPCC adverte que as alterações climáticas terão um sério impacto neste sector.

Mas a estes avisos se faz orelhas moucas, já que as medidas de precaução e adaptação não trazem benefícios a curto prazo nem para a indústria imobiliária, hoteleira e turística, nem para os políticos. Assim, todos preferem continuar a rumar para o abismo e a aproveitar a festa, enquanto podem.

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