Habitação: liberdade de ter e de vir a ter

O Programa Mais Habitação é uma valente pedrada no charco.

A crise da habitação não é nova. Há anos que os preços da habitação sobem: desde 2015, 69% na compra de imóveis e 16% no caso das rendas. Não é uma crise só das grandes cidades, nem só dos jovens ou de imigrantes. Nem é apenas uma questão de direitos: onde não mora gente, não investem empresas. É uma crise que floresce no paradoxo de sermos o país da Europa onde os jovens saem mais tarde de casa dos pais, mas também o país da OCDE com mais casas por cada mil habitantes.

Não há respostas fáceis nem rápidas. A habitação pública podia ser uma opção, não fosse Portugal um dos países que menos a tem (2%). Para chegar aos 5% pretendidos pelo Governo, o Estado precisará de construir ou comprar 170 mil casas, aproximadamente o mesmo número de habitações familiares concluídas nos últimos 12 anos. Já o mercado privado, liberalizado desde 2011, não nos trouxe a mítica “confiança dos senhorios” que a direita dizia levar mais casas para o arrendamento. Também os benefícios fiscais não incentivaram muitos ao arrendamento acessível ou duradouro.

O Programa Mais Habitação é, por isso, uma valente pedrada no charco. A oferta é mobilizada – com crédito para reabilitação pública e privada e com desenvolvimento privado em imóveis públicos, facilitando o licenciamento e a conversão de imóveis de comércio ou serviços em uso habitacional. O Estado assume os riscos do arrendamento – de incumprimento do pagamento, garantindo-o, de encontrar e gerir um inquilino, arrendando para subarrendar, ou mesmo da rendibilidade das obras de reabilitação, assumindo-as e recuperando esse investimento através do arrendamento. O Governo apresentou também um generoso subsídio de renda e um apoio na subida da taxa de juro da habitação. Apoia assim do lado da oferta e da procura.

Todavia, o programa conheceu também controvérsia no fim dos "vistos gold", no congelamento das licenças de alojamento local e no arrendamento forçado de casas vazias. A direita quer vender a ideia de que estas medidas prejudicarão a classe média. Mas se elas não irão abranger quem tem casa de férias, quem é emigrante ou quem está num lar e tem a casa vazia, fica a noção de que muito mais do que a prejudicar, estas medidas vão, sim, ajudar os filhos dessa classe média a saírem de casa e realizarem os seus projetos de vida.

Os mercados livres, reza a teoria, dependem de uma liberdade de entrada que raramente existe na prática, mas que é especialmente impossível no mercado de habitação. Este mercado, como todos os outros, depende de diversas leis e regulamentações que limitam o direito à propriedade em prol de outros direitos, como a segurança, o ambiente ou a saúde. Com o cuidado da proporcionalidade, porque não pode o direito à propriedade coexistir com o direito à habitação? As medidas que apresentamos visam mesmo fazer coexistir o respeito por quem poupa e investe com a salvaguarda da capacidade de outros virem a ter essas mesmas poupanças e investimentos, protegidos de rendas excessivas.

O Programa Mais Habitação é, pois, uma conjugação de audácia e equilíbrio perante um mercado entrincheirado e desequilibrado. Para além da liberdade de quem tem, é garantir também a liberdade de se poder vir a ter. Talvez, por isso, incomode tanto e, talvez por o fazer, mereça tamanha expetativa que desta é que vai ser.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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