Professores à espera de Godot

O hábito tudo silencia. Samuel Beckett

Nada a fazer. Assim começa a peça. Os professores saíram à rua para reivindicar melhores condições de trabalho. Sentem-se indignados, porque Godot não tem respondido aos sucessivos apelos que foram feitos ao longo de uma década.

Os professores saíram à rua para denunciar o que se passa na escola pública, sobrecarregados com horas letivas e não letivas, cansados de carregar a casa às costas, de terra em terra, deixando aqui e acolá um pedaço de alma, resistindo como podem às pressões diárias no exercício da sua função.

Os professores saíram à rua, porque estão revoltados com os cortes salariais a que foram sujeitos durante uma década, com o congelamento das carreiras profissionais, com a aplicação de quotas que limitam a sua progressão no quinto e sétimo escalões.

Os professores saíram à rua, porque consideram o atual sistema de avaliação docente uma tremenda injustiça, já que os penaliza gravemente.

Os professores saíram à rua, porque gostariam de ter mais tempo para preparar as aulas, mas estão obrigados a cumprir múltiplas tarefas administrativas, impostas pela máquina burocrática. As expectativas de alguém poder enveredar pela nobre profissão do ensino são tão baixas que o próprio governo já ponderou a hipótese de requisitar técnicos de outras áreas para suprir a falta de docentes na escola pública.

Perante este cenário, poder-se-ia pensar que Godot sofre de autismo, já que não responde às reclamações e protestos dos professores. Mas isso não é verdade. De vez em quando, Godot decide enviar o Rapaz e, com a sua arte de Aladino, lança umas quantas medidas para verificar se o sistema continua a operar segundo a sua vontade. O professor, como bom serviçal que é, ouve, cala e trabalha arduamente, durante o dia, à noite e até aos fins de semana, se for necessário. Só quem anda lá é que sabe. O calvário tem sido longo, já não há paciência.

No entanto, os professores não desistem. Continuam à espera de Godot. Porém, Godot continua sentado na cadeira do poder onde tudo pode acontecer, mas nada acontece, porque ele não quer resolver efetivamente os problemas da escola pública. Poder-se-ia pensar que os professores estão unicamente preocupados com a recuperação do tempo de serviço para obter melhores remunerações. E mesmo que isso fosse verdade, estavam no seu direito. Mas o problema ultrapassa a questão salarial.

Acima de tudo, os professores estão preocupados com o estado de degradação a que chegou a escola pública: precariedade laboral, envelhecimento da classe docente, excesso de burocracia, aumento de casos de indisciplina na escola, falta de recursos humanos.

Se a escola pública foi criada para garantir a todos os alunos as mesmas condições e oportunidades, independentemente da sua situação económica e familiar, a mesma escola deveria garantir de igual modo a todos os docentes as mesmas condições de trabalho. Não é aceitável que um professor contratado, com vinte anos de serviço, não tenha ainda obtido a vinculação na carreira docente, estando sujeito à mobilidade constante, com uma remuneração salarial que fica aquém do que realmente deveria auferir, suportando despesas pessoais de deslocação e alojamento. Não é admissível que um assistente operacional com trinta anos de serviço continue a receber o ordenado mínimo tal como um candidato à entrada na carreira profissional. Chama-se a isto servidão laboral.

Pozzo estica a corda que está presa ao pescoço de Lucky. De vez em quando aplica o chicote. A noite é escura e imensa. Os professores continuam à espera, mas Godot não vem para resolver os seus problemas. E enquanto ele não vem, o hábito tudo silencia. E é esta contínua espera, fazendo sacrifícios e suportando mortificações, que tem exasperado os professores ao longo dos anos.

O Rapaz sabe o que a casa gasta, mas cumpre piamente a ordem de Godot. Por isso, em jeito de provocação, vai dizendo aos representantes dos professores: "O senhor Godot disse-me para vos dizer que ele não virá esta noite, mas seguramente amanhã." E os professores esperam que amanheça, que se faça luz e acabe de vez a noite escura e imensa. E quando o Rapaz regressa para estabelecer um novo entendimento entre Godot e os professores, o resultado é este: ou é porque a proposta de Godot não é verdadeira e os professores a rejeitam por não se reverem nela; ou é porque o Godot está mais interessado nos dividendos da sua encenação do que propriamente nas preocupações dos professores; ou é porque os professores não acreditam em Godot, porque já se sentiram enganados várias vezes.

E então o que se há de fazer para resolver este problema? O Padre António Vieira afirma o seguinte: se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e exemplo, então o melhor é lançá-lo fora, para que seja pisado por todos. O mesmo é dizer que, se a proposta de Godot for insípida e pobre, o melhor será descartá-la para que seja desprezada pelos professores. E porquê? Porque os professores não são estúpidos, e ainda que sejam por vezes ingénuos, sabem quando a verdade do artifício na mesa de negociações os não convence, quando a proposta não passa de uma receita mal feita, com ingredientes nefastos para a sua saúde profissional.

Mas os professores estão de sobreaviso. Por isso, hoje estão determinados a lutar para ver a luz do sol, não o sol-posto de Godot, mas a Aurora que lhes poderá devolver alguma justiça para voltarem a sentir a mesma alegria que sentiram no início das suas carreiras. É com esse espírito renovado que vão para a rua lutar por uma causa nobre a fim de recuperar alguma dignidade e respeito para o pouco tempo que lhes resta até se reformarem, e já não falta muito.

Os professores estão cansados e velhos. Olham para a árvore esquelética (educação) com apreensão, já que não veem folhas a nascer. Veremos se vamos ter professores suficientes para ensinar os nossos alunos na próxima década. Por este andar, prevejo que Godot terá em mãos um sério problema para resolver. Mas como ele já resolveu outros tantos de maior gravidade no passado, fico descansado. Quem inventou uma geringonça, pode inventar o mundo.

Apetecia-me terminar este desabafo com a tirada “E vivam os professores!”, mas prefiro reeditar o título da obra escrita por Samuel Beckett com uma ligeira alteração – Professores à espera de Godot. Tal como Vladimir e Estragon, também os professores estão à espera de Godot. No fundo, estamos todos no mesmo palco desesperadamente à espera de um milagre, afundados na noite infinita, porque "Ninguém sabe que coisa quer. / Ninguém conhece que alma tem, / Nem o que é mal nem o que é bem", como dizia o poeta da Mensagem. O mais importante é não perder a esperança. E enquanto os professores não conseguem descalçar esta bota, vão criando a ilusão de fazer qualquer coisa nem que para isso seja necessário ir para a rua e gritar aos céus – Basta! E se Godot não voltar, voltamos amanhã, dizem os professores. E depois de amanhã. Talvez. E assim por diante. Ou seja. Até que ele venha.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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