A mais bela história de amor

Quando uma pessoa recebe a notícia de que tem cancro, pode sentir-se incapacitado de pensar em outras coisas que não na sua condição e em como ela pode afetar sua vida e daqueles que ama.

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Antes de iniciar os tratamentos de quimioterapia, Hugo realizou uma colheita de sémen, salvaguardando a possibilidade de vir a ser pai. Posteriormente, elaborou um documento escrito em que autorizava Ângela, a mulher, a utilizar o sémen criopreservado para fertilizar os seus óvulos.

Hugo morreu em 2019. Tinha 29 anos.

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Na quarta-feira, Ângela utilizou o Instagram para anunciar que está grávida de Hugo: "Hoje finalmente partilho com todos vocês a tão desejada notícia! Foram anos de luta para aqui chegar, o processo foi longo e doloroso… mas finalmente conseguimos! É com uma alegria enorme e com o coração cheio que hoje partilho que agora batem dois corações dentro de mim."

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"Finalmente conseguimos!", escreveu Ângela. Conseguiram. A Ângela e o Hugo conseguiram. O sonho de ambos.

Amor. Sonho. Coragem. Crença. Persistência.

Ao ler a notícia da gravidez de Ângela e Hugo, foram estas as palavras que me ocorreram enquanto algumas lágrimas me embaciaram os olhos.

Vejo a história de Ângela e Hugo como uma das mais belas histórias de amor que já conheci. Um sonho, a caminho de ser realizado, que exigiu de Ângela muita coragem e determinação para persistir mesmo quando a Lei o impedia.

Não esqueçamos, todavia, e digo-o para uma vez mais lhe elogiar a tenacidade e o amor a um sonho, como poderá ser difícil para Ângela gerir emocionalmente uma gravidez (desejada e feliz, como se sabe, mas em tudo há sempre um reverso) que biologicamente perpetua o marido falecido. Também por isso e por estar disposta a esse risco, tem a minha admiração. Desejo-lhe calma, paz interior e alegria.

Parabéns, Ângela e Hugo. A vossa história é linda.

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Permitam-me a partilha da minha história. Aos 31 anos, foi-me diagnosticado um cancro no testículo. Já o escrevi aqui noutra ocasião. Repito-o agora com um outro propósito.

Na minha primeira consulta no IPO de Lisboa, o professor José Luís Passos Coelho agendou uma recolha de sémen na Maternidade Alfredo da Costa (MAC). "É o procedimento normal", disse-me, procurando não me assustar demasiado. "Foi inútil, caro professor, eu estava aterrorizado e coloquei a hipótese de parte desde primeiro momento", disse-lhe alguns anos depois, numa consulta de revisão.

O internamento para realizar os tratamentos de quimioterapia ficou marcado para o dia seguinte. Antes, porém, deveria passar pela MAC para realizar a recolha de sémen.

– Correu tudo bem com a recolha? –, perguntou o professor Passos Coelho ao ver-me entrar na enfermaria.

– Não fui, não tenho cabeça para isso –, respondi, sem mostrar grande abertura para debater o assunto, e pensando para mim próprio "como é possível alguém dizer que é um procedimento normal alguém masturbar-se para um frasco quando sente a sua vida ameaçada por um cancro. Lamento, apenas a minha sobrevivência interessa neste momento".

– É pena, isto pode torná-lo infértil. Já tem filhos? –, perguntou o professor, repetindo a pergunta que me havia colocado na primeira consulta.

O seu tom era empático, mostrando claramente que compreendia a minha recusa em fazer a recolha.

"Este é um homem bom", pensei.

– Já sim, professor –, respondi com um sorriso que acreditei que o convenceria (e a mim) de que estava certo da minha decisão.

Nunca me recriminei por não ter feito a recolha. Só quem passa por uma situação como esta pode saber, ou não, porque decidiu fazer ou não a recolha e com que critério. Já tinha um filho, talvez fosse por isso. Não sei. O João tinha um ano e meio e talvez eu já me sentisse completo e só quisesse cuidar de mim para o ver crescer. Talvez. Não sei. A esta distância já não sei. Talvez nem na altura soubesse. Sei, isso sim, que quando uma pessoa recebe a notícia de que tem cancro, pode sentir-se incapacitado de pensar em outras coisas que não na sua condição e em como ela pode afetar sua vida e daqueles que ama.

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Cerca de 15 anos depois, eu e a minha namorada vivemos uma difícil odisseia para sermos pais. Asseguro que nunca me arrependi de não ter feito a recolha. Simplesmente não fui capaz de a fazer naquela altura e aceitei esse facto há muito. Até porque de nada me serviriam os remorsos.

A boa notícia é que tivemos sorte e, com uma ajudinha da ciência, conseguimos ser pais de uma menina, agora com quase três anos. Mas nem toda a gente tem tanta sorte como nós. Por isso, seguindo a lógica do "faz o que te digo, não o que eu faço", quero pedir a todos aqueles que que se encontrem na situação em que eu me encontrava (e que o Hugo também viveu), que façam a recolha. Se não a utilizarem, podem sempre doá-la. Há quem o agradeça de todo o coração.

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Há uns tempos, na sequência de uma crónica que assinei e em que relatei um episódio envolvendo um padre, alguém que se identificou como leitor do PÚBLICO, enviou-me um e-mail anónimo (que valente), em que dizia o seguinte: "É impressionante como a vocês do PÚBLICO tudo vos acontece, tudo viram, tudo já viveram. Areia para os olhos, é o que é."

Imagine, caro leitor anónimo, mesmo correndo o risco que lhe pareça impossível, que até me aconteceu isto que hoje aqui relato. Sabe, estas coisas podem acontecer a qualquer um. É a vida. E acredito que ao partilhá-lo, consigo gerir melhor o que sinto e, quem sabe, até ajudar alguém.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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