O ensino superior é quem mais ordena

Este modo de seleção e de acesso não serve sequer os propósitos da frequência do ensino superior, pois não avalia as competências mais reclamadas.

Temos de continuar a discutir serena e profundamente que ensino secundário queremos para o nosso país e se um sistema de acesso essencialmente dependente de exames realizados neste nível de ensino nos ajuda ou não a cumprir integralmente o currículo proposto, nomeadamente no que se refere a competências que são reclamadas pelo ensino superior, pelo mercado de trabalho e pela sociedade em geral tais como a resolução de problemas, a autonomia, o pensamento crítico e a criatividade. (Domingos Fernandes)

Podemos continuar a discutir serena e profundamente. Mas é incerta a mudança de desfecho. De facto e desde há muitos anos que o “ensino superior é quem mais ordena”, como desde sempre denunciou o meu querido mestre e amigo Eurico Lemos Pires, transformando o ensino secundário numa espécie de “estudos menores” do ensino superior.

De facto, pode enunciar-se um conjunto de proposições teórica e empiricamente demonstráveis:

I) O ensino superior é quem mais ordena nos modos de cumprir os currículos, programas e avaliação do ensino básico e secundário.

Esta sobredeterminação influencia de forma negativa todas as práticas educativas pelo menos desde o 1.º ciclo do ensino básico, contrariando o estabelecido pela Lei de Bases, quando supostamente obriga a que o sistema educativo se organize segundo o princípio da sequencialidade progressiva (n.º 2 do artigo 8.º): “A articulação entre os ciclos obedece a uma sequencialidade progressiva, conferindo a cada ciclo a função de completar, aprofundar e alargar o ciclo anterior, numa perspectiva de unidade global do ensino [obrigatório]”.

Isto teria de significar que, na ação concreta, cada ciclo de estudos se deveria organizar para dar uma sequência harmoniosa às aprendizagens geradas no ciclo anterior, aplicando-se também, naturalmente, ao ensino superior.

Não sendo assim, todo o sistema (e as pessoas que nele trabalham) se encontra refém dos supostos interesses do ensino superior. Mas até isto pode não ser verdade: este modo de seleção e de acesso também não serve os propósitos da frequência do ensino superior pois não avalia as competências mais reclamadas.

II) Esta sobredeterminação reduz a qualidade e a quantidade das aprendizagens prescritas pela própria legislação em vigor.

Por efeito do peso no acesso, há um alargado conjunto de competências (que como se sabe, resultam de uma combinação de conhecimentos, capacidades, atitudes e valores, explicitamente previstos no Perfil dos Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória) e que são valorizadas e exigidas pela vida (onde quer que ela se viva) que não podem ser avaliadas pelos exames: a persistência, a curiosidade, o entusiasmo, a coragem, a criatividade, a liderança, a colaboração, o compromisso cívico, a autodisciplina, o sentido de beleza, a motivação, o pensamento holístico, a empatia, a compaixão, a humildade, o sentido de humor, a resiliência, a integração e interligação de conhecimentos…. estão muito longe de ser testáveis em exame. Ora, não sendo avaliados pelos exames, tendem a não ser ensinados. Não sendo ensinados, tendem a não ser escolarmente valorizados e avaliados. E surge a inevitável questão: mas que pessoas e que cidadãos estamos nós a formar?

Aliás, as recorrentes comparações entre as classificações obtidas nos exames e as classificações atribuídas pelos professores e pelas escolas querem fazer passar a ideia de que os professores não sabem avaliar, que a nota válida (e fiável e confiável) é que a resulta dos exames, seguindo a sacrossanta curva de Gauss que assegura o cabal cumprimento da função seletiva e estratificadora da escola seguindo a ficção meritocrática (esquecendo de forma deliberada que avaliam objetos diferentes, sendo por isso natural que produzam resultados também diferentes). Mas, mais grave que esta acusação implícita e a subjacente tese inflacionista, está a ser cúmplice com um desvirtuamento das finalidades da educação, e um claro empobrecimento das aprendizagens vitais.

III) O próprio ordenamento normativo introduz paradoxos e perversidades nos modos de regulação da ação.

De facto, o Perfil dos Alunos que orienta toda ação educativa (ou que deveria orientar) estabelece que “este Perfil constitui-se como matriz comum para todas as escolas e ofertas educativas no âmbito da escolaridade obrigatória, designadamente ao nível curricular, no planeamento, na realização e na avaliação interna e externa do ensino e da aprendizagem.” (Despacho n.º 6478/2017 de 26 de julho).

Ora, se deveria ser assim, que de forma a avaliação externa é coerente e congruente com a imposição normativa que deveria seguir?

Mas mais grave ainda: quando o presidente do Iave sustenta que tem uma plataforma com 211 itens baseados em provas de exame e que o “objetivo é que os professores passem a adequar a sua estratégia [pedagógica, supõe-se] aos resultados na avaliação externa” e explica, para não restarem dúvidas, “ou seja, que passem a usar o desempenho de cada aluno (através dos relatórios individuais RIPA [das provas de aferição]) na sala de aula e além do diagnóstico e dos dados de avaliação, o Iave passará a dar sugestões pedagógicas e didáticas para cada situação”.

Esta apologia do teste e do exame, esta obsessão de controlo e de subordinação, esta proletarização profissional poderia ser admissível num cenário em que as provas externas cumprissem o despacho a que estão obrigadas e não servissem para efeito de acesso. Mas, evidentemente que o não cumprem, sendo apenas mais uma peça na engrenagem da menorização dos professores e do ensino secundário.

IV) Os projetos educativos das escolas e os projetos pedagógicos dos profissionais da educação são fortemente limitados com esta imposição absurda e ilegal pois contraria um princípio basilar da Lei de Bases do Sistema Educativo (por todos o n.º 4 do artigo 2 – “O sistema educativo responde às necessidades resultantes da realidade social, contribuindo para o desenvolvimento pleno e harmonioso da personalidade dos indivíduos, incentivando a formação de cidadãos livres, responsáveis, autónomos e solidários e valorizando a dimensão humana do trabalho” e, como vimos, também não cumpre os referentes curriculares estruturantes.

Conclui-se, assim, que este modo de regulação do acesso ao ensino superior retira o caráter terminal do ensino secundário, reduz fortemente a sua autonomia e, acima de tudo, compromete o desenvolvimento das pessoas, dos cidadãos, da sociedade e das qualificações para trabalho e para a vida. Em última instância, também não serve os interesses do ensino superior. E, a ser assim, resta a questão paradoxal: que poderosos interesses serve para se perpetuar?

Post-scriptum

A fórmula encontrada – os exames voltam a contar para a finalização do ensino secundário, fazendo os alunos três exames (Português e dois à escolha dos estudantes) é positiva para a credibilização social do ensino e para a liberdade de aprender dos alunos (que deve crescer ainda mais).

A descida de ponderação para composição da classificação do ensino secundário (de 30% para 25%) é simbólica, mas educacionalmente significativa.

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