Desencontros (II)

O problema da imigração continua como uma chaga aberta, não apenas em Portugal, mas no mundo como os media denunciam.

Os recentes acontecimentos em Olhão, a discussão sobre imigração após o incêndio na Mouraria, as vidas humanas perdidas e a memória do passado recente sobre a situação da comunidade imigrante no Alentejo são também marca do nosso desencontro com a realidade, que irrompe e nos interpela com veemência. Também a acção do Estado e o dever de responsabilidade pública, que tendo patamares funcionais consoante a sua autonomia têm uma dimensão hierárquica irrecusável.

Impõe-se reflexão, nomeadamente, nas situações que pela delicadeza, oportunidade política e dimensão ética e moral, exigem intervenção. A agressão em Olhão configurou, no seu tempo e na circunstância política dessa semana, a necessidade de acção pronta, que o chefe do Estado assumiu. Necessária? Talvez, perante inoperância do Estado e o ruído político-mediático. Simbólica? Certamente e com impacto.

O problema da imigração continua como uma chaga aberta, não apenas em Portugal, mas no mundo como os media denunciam. O sentir colectivo das sociedades de acolhimento oscila entre estranheza e medo perante culturas e hábitos diferentes e o reconhecimento do valor económico e necessidade do trabalho dos imigrantes para o desempenho de tarefas que os naturais recusam fazer, a sua contribuição para o equilíbrio demográfico e a sustentabilidade dos sistemas de Segurança Social perante o inverno demográfico. E perante a frequente exploração indigna do trabalho em condições impróprias duma sociedade civilizada, como se tornou dramaticamente claro perante indiferença colectiva.

São interpelações que exigem políticas consequentes, com seriedade, rigor e sem demagogia. Não apenas resgatar os infelizes da Terra que fogem das múltiplas tiranias, da miséria e do sofrimento, mas proporcionar aos que recebemos, os direitos de cidadania e condições decentes de acolhimento e de trabalho, em tempo oportuno e útil. E combater eficazmente todos os esquemas de tráfico humano que infelizmente prosperam. Terreno fértil, para os populismos, dum e doutro lado da barricada política, que apelando à emoção primária impedem reflexão e serenidade. E uma interrogação se impõe com urgência: será que os responsáveis políticos do Estado têm feito o necessário ou o suficiente para colmatar os problemas que periodicamente irrompem com dramatismo na consciência cívica?

Esperamos e exigimos que sim. A generosidade moral que o gesto do Presidente comportou, será certamente inspiradora, mas não pode servir para desculpar ou cobrir, como manto diáfano, erros e insuficiências dos serviços públicos, administrativos, judiciais e políticos responsáveis pelo acolhimento de imigrantes. Será que, no conforto do conformismo e indiferença, a acção do chefe do Estado é panaceia espiritual ou desafio? A importância e o valor da acção simbólica são fundamentais em Política. Mas ao rever, no meu espírito, toda esta complexa problemática, na imigração, mas também na habitação, na saúde e educação, no drama dos abusos sexuais, que é preciso conhecer em toda a sua dimensão na sociedade portuguesa, com coragem e determinação, para os prevenir e tratar sem hesitações nem tergiversações, recordei a citação adaptada de François La Rochefoucauld: se a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude, a acção simbólica é o preço que a ideologia paga à inacção!

Este é o grande desafio para os tempos difíceis que vivemos: decência e acção, organização e coerência. Pelos valores, numa sociedade moderna e progressiva. Para que a inacção não prevaleça e a hipocrisia não triunfe.

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