“Noiva do Daesh” foi vítima de tráfico sexual, mas isso não chega para anular perda de nacionalidade

“A ideia de que [Shamina] Begum podia ter concebido [a sua viagem para a Síria] sozinha não é plausível”, considerou a comissão especial. Na Síria desde os 15 anos, já perdeu três filhos.

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Shamina Begum, ainda em Londres, numa fotografia da família Reuters

Apesar de restarem poucas dúvidas de que Shamina Begum “foi recrutada, transferida e depois alojada com o objectivo de exploração sexual”, isso é “insuficiente” para que veja ser revogada a perda de cidadania britânica, considera o juiz Robert Maurice Jay, do Tribunal Superior de Justiça de Inglaterra e de Gales. Quatro anos depois da decisão do Governo de lhe retirar a cidadania, Begum, que tinha 15 anos quando foi levada para a Síria por membros do Daesh, vê assim recusado o recurso analisado por uma comissão especial de imigração formada por três juízes.

O juiz Jay, autor da deliberação conhecida nesta quarta-feira, considera que este é um caso de “grande preocupação e dificuldade”. Admitindo que “muitas pessoas sensatas” concordariam com a avaliação do Ministério do Interior — feita em 2019 e reafirmada agora — de que Begum viajou voluntariamente e que representa “uma ameaça para a segurança nacional”, a comissão diz que “a ideia de que Begum podia ter concebido e organizado tudo isto sozinha não é plausível”.

Assim, “pessoas razoáveis discordariam profundamente com a ministra do Interior [Suella Braverman], mas isso levanta questões sociais e políticas que não cabe a esta comissão abordar”. Apesar disso, os juízes dizem-se preocupados com “a aparente desvalorização por parte do Ministério do significado da radicalização e do aliciamento, ao afirmar que o que aconteceu a Begum não é incomum”. Seja como for, a questão da cidadania só pode ser decidida pelo Ministério do Interior, conclui a comissão.

Begum, que saiu do Reino Unido com duas amigas, em 2015, é uma entre as centenas de meninas e mulheres europeias que se renderam depois da derrota dos terroristas do Daesh, em 2017, na Síria (conhecidas como “​noivas do Daesh”​). Com elas estavam perto de 1500 menores, seus filhos. Dois anos depois, não só viu o Governo do seu país recusar o pedido para regressar — um pedido feito por todas as europeias detidas em acampamentos-prisões no Norte da Síria e do Iraque — como viu decretada a sua perda de cidadania.

Três filhos mortos

Na altura estava grávida do terceiro filho e já tinha perdido dois. Numa entrevista, afirmou que queria regressar precisamente para garantir que não veria morrer o filho que estava prestes a nascer. Pouco depois, as Forças Democráticas da Síria (um grupo curdo formado e apoiado pelos Estados Unidos para combater o Daesh), que gerem os campos, anunciaram que o bebé, Jarrah, tinha morrido, quando a família de Begum já pedira para o receber no Reino Unido.

A defesa de Begum começou por argumentar que o Governo não lhe podia retirar a nacionalidade porque isso a deixaria apátrida — em princípio, só pode ser retirada a cidadania a alguém que tenha uma segunda nacionalidade. O Governo e a mesma comissão especial já tinham declarado que a questão não se coloca porque “tecnicamente” ela tem direito à cidadania bangladeshi: a sua família é do Bangladesh, mas ela nunca visitou o país e o Governo de Daca não tenciona deixá-la entrar.

Agora, os seus advogados, Gareth Pierce e Daniel Fuerner, apelam à actual ministra do Interior para reavaliar o caso “à luz das perturbantes descobertas da comissão”, considerando que o Governo deixa Begum “numa detenção ilegal, arbitrária e indefinida, sem julgamento, num campo sírio” e defendendo que esta posição retira protecção a outras vítimas de tráfico. Seja como for, prometem “perseguir com urgência todas as formas possíveis de contestar a decisão”.

Já o Ministério do Interior afirmou-se “agradado” com a deliberação”, sublinhando que a sua prioridade continua a ser “a segurança do Reino Unido”. Sajid Javid, que tinha a pasta de Braverman em 2019, congratulou-se e reafirmou que os ministros devem ter “o poder para impedir a entrada no país a quem se considere que o ameaça”.

A maioria dos países da União Europeia já repatriou grande parte das suas cidadãs e dos seus filhos que se encontravam nestes campos. Portugal é dos poucos países que ainda não o fizeram: há 16 mulheres e 27 crianças identificadas pelo país (a maioria das mulheres não são portuguesas, mas casaram com portugueses e são mães dos seus filhos).

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