Caros supermercados, parem de colocar doces junto à caixa

Todos nós, mas especialmente crianças — cujos cérebros ainda não estão maduros —, somos seduzidos por embalagens, promoções e promessas de experiências sensoriais gratificantes.

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"No Reino Unido, por exemplo, as principais cadeias de supermercado removeram os produtos açucarados da zona de pagamento" Greta Hoffman/Pexels

Recebi com enorme alegria a notícia de que, em breve, os CTT vão deixar de vender raspadinhas. A medida, que resulta de uma proposta do Livre, está alicerçada na ideia de que o prestador de um serviço público não pode estar a fomentar um vício. Faz todo o sentido. Numa linha de pensamento próxima, acredito que não deveria ser permitida a venda de doces junto à fila da caixa dos supermercados.

Quem tem filhos pequenos e vive em grandes centros urbanos, certamente já teve esta experiência: a criança vê um chocolate, que está ao alcance das mãos, e expressa efusivamente a vontade de consumi-lo. Os pais, exaustos, após um longo dia de trabalho, loucos para chegar a casa e fazer o jantar, acabam por dizer que sim. Depois, claro está, é pouca a fome para comer um peixinho com brócolos.

Não é novidade que a disposição de produtos nas prateleiras é estudada ao pormenor pelos grandes retalhistas. Da iluminação à temperatura ambiente, quase tudo num espaço comercial tem como objectivo favorecer o consumo. E isso inclui a organização das prateleiras e corredores, sendo a fila da caixa considerada uma área nobre para a promoção de compras impulsivas. Produtos que podem ser do interesse dos mais pequeninos tendem a ficar estrategicamente nas prateleiras mais acessíveis.

A fila para a caixa constitui, com frequência, um espaço afunilado, de passagem obrigatória, onde colocamos produtos sobre a esteira e aguardamos o pagamento. Estamos, de algum modo, encurralados. Trata-se de um lugar que nos pede uma atitude de permanência e paciência — algo muito exigente para crianças. É natural que, nesse compasso de espera, nos sintamos tentados ou obrigados a adquirir artigos de baixo custo e consumo rápido, capazes de proporcionar uma gratificação imediata. Assim são os chocolates, as bolachas recheadas e os rebuçados.

Estas tácticas tornam a rotina de muitas famílias mais difícil, além de prejudicar indirectamente a saúde infantil através do fomento ao consumo de açúcar. A menos que sejamos capazes de produzir os nossos próprios alimentos, ou que façamos sempre compras online — o que representa um custo adicional para o agregado familiar —, não temos outra escolha se não ir ao supermercado para adquirir bens de primeira necessidade. E, quando vamos, no fim, somos forçados a passar pelo temível e stressante portal das guloseimas.

A situação é ainda mais penosa quando se trata de famílias com crianças com deficiência. Meninos autistas, por exemplo, tendem a terminar as compras com uma grande sobrecarga motivada pelo excesso de luzes, ruídos e outras informações sensoriais. Nessa altura, dificilmente terão regulação emocional para ouvir um não” sem entrarem em crise. É apenas cruel pedir aos pais para conterem fisicamente os filhos na zona da caixa, por forma a evitar que rasguem pacotes e devorem o seu conteúdo. Esta cena, infelizmente, é mais comum do que se pensa.

Não podemos argumentar aqui que só compra quem quer. Todos nós, mas especialmente crianças — cujos cérebros ainda não estão maduros —, somos seduzidos por embalagens, promoções e promessas de experiências sensoriais gratificantes. E é sabido que muitas marcas se digladiam para conquistar um lugar, muitas vezes negociado, junto à caixa.

“Não podemos tirar o marketing da equação. A escolha individual depende muito do marketing”, explicou-me Marion Nestle, professora de saúde pública na Universidade de Nova Iorque, numa entrevista há vários anos. “As empresas investem milhões de dólares em marketing de alimentos. Não conseguimos pensar criticamente sobre o que estamos a comprar. O marketing visa actuar abaixo do radar do pensamento crítico”, remata a investigadora.

Há muito que a UNICEF alerta para a importância de construirmos ambientes não nocivos para crianças, o que implica a disponibilidade de alimentos saudáveis. “É cada vez mais reconhecido que os ambientes alimentares pouco saudáveis violam vários direitos da criança”, indica um relatório da agência das Nações Unidas para a infância. Sendo os espaços onde compramos bens essenciais um local frequentado por crianças, não deveríamos, enquanto sociedade, garantir que este grupo vulnerável não estivesse exposto a compras impulsivas junto à fila da caixa?

Reparem que a ideia não é nova. No Reino Unido, por exemplo, as principais cadeias de supermercado removeram os produtos açucarados da zona de pagamento. Um artigo da CNN refere também que em Berkeley, nos Estados Unidos, foi aprovada em 2020 a lei da “saída saudável”. O diploma regulamenta os produtos alimentares que podem ser vendidos perto da caixa, restringindo doces e refrigerantes e incentivando frutas frescas, iogurtes e frutos secos.

Estes exemplos mostram que é possível desenhar políticas públicas que protejam a saúde das famílias. Ou, havendo menos coragem, que os retalhistas criem pelo menos zonas de pagamento amigas das crianças. Sonho com o dia em que poderei chegar à zona da caixa sem apreensão, sem ter de segurar o meu filho para que ele não abra chocolates que, depois, sou obrigada a comprar. Estou a sonhar muito alto?

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