A nova função da Universidade: romper com o presente

O desafio é este: colocar o ensino e a investigação ao serviço de objetivos, ao serviço de valores, existenciais.

As universidades continuam a funcionar como se o futuro pudesse ser a continuação do presente. Mas o mundo em que vivemos tem recursos finitos e já estamos a usar, por ano, duas vezes os recursos da Terra. Para respeitar o Acordo de Paris, temos de reduzir as emissões de CO2 em 5% por ano. Ora, os 10% mais ricos consomem grande parte dos recursos e emitem 45% do CO2. Como disse Susana Peralta numa entrevista ao PÚBLICO, “não podemos manter todos o mesmo nível de consumo”.

A procura do interesse individual e da competitividade com base em salários baixos são valores do passado que têm de ser substituídos pelos de partilha, sobriedade e sentido do bem comum. Hoje, uma sociedade que cultiva nos seus jovens o ideal de serem ricos condena-se ao impasse; o consumo dos ricos bloqueia a transição ecológica. Neste contexto, a responsabilidade das universidades é pesada.

Ainda se organizam cursos e encontros universitários sem que seja enfrentado o desafio que representa para as universidades esta rutura, civilizacional e científica, entre o presente e o futuro. O desafio é este: colocar o ensino e a investigação ao serviço de objetivos, ao serviço de valores, existenciais.

Que valores para além dos números?

As universidades portuguesas prosseguem com entusiasmo o objetivo europeu de ter 50% dos jovens licenciados até 2030. Mas para quê, exatamente? Para promover que tipo de desenvolvimento?

No atual panorama universitário português, a urgência está em valorizar os cursos profissionalizantes e as profissões técnicas e manuais, muitas das quais requerem uma inteligência diferente da dos saberes académicos. Foi essa a lição da pandemia: dependemos das profissões “essenciais”, as que lidam com as necessidades da vida. O que teria acontecido se as enfermeiras, os estafetas e os agricultores tivessem ficado em casa? É essencial levar os jovens a conectar-se com a matéria viva, com a dimensão física do mundo.

A digitalização alimenta a ilusão de um mundo "meta-físico". Através dos ecrãs, relacionamo-nos com informação, isto é, com uma simulação da realidade, e deixamos de ser confrontados com os limites da Terra. Deixamos também de nos relacionar fisicamente, ou seja, pessoalmente, com os outros. Tornamo-nos seres desincarnados, informados mas insensíveis, nos nossos comportamentos, à situação ecológica.

Para efeitos de acreditação internacional, fixou-se o objetivo de ter 50% dos docentes universitários com a categoria de associado e catedrático. Fizeram-se concursos internos e as universidades têm agora os mesmos docentes, com as mesmas competências, só que agora são mais caros. Precisando de mais recursos, as universidades oferecem mais mestrados e doutoramentos, com os efeitos perversos que já aqui mencionei.

As progressões na carreira, merecidas, poderiam ser feitas com acréscimos salariais menores para poder aumentar os salários dos funcionários não-docentes. E é assim que a decisão seria difundida publicamente: as universidades dão o exemplo do que deve imperativa e urgentemente ser feito: diminuir as desigualdades porque isso é necessário para a transição ecológica. Esta medida traria certamente muitos votos. Afinal, para quem governam os governantes?

Preparar os cidadãos ricos para uma diminuição do seu consumo

Obviamente que o decisivo para diminuir as desigualdades é reverter a concentração do capital, modificar os modelos de governo das grandes empresas, e fazê-las pagar os impostos devidos. O Inflation Reduction Act de Joe Biden representa neste aspeto uma “viragem doutrinal”, nos termos de Janet Yellen. Os objetivos de luta contra as alterações climáticas e de melhoria da justiça social substituíram o da competitividade. É dada primacia à sustentabilidade sobre a produtividade.

Este Plano, de 430 mil milhões de dólares, mostra que os Estados Unidos sabem que, em democracia, não pode haver transição ecológica sem diminuição das desigualdades. As políticas industriais, fortemente protecionistas, serão financiadas por novos impostos sobre os lucros e por uma reestruturação dos serviços fiscais que permitirá cobrar mais 124 mil milhões em impostos. Só beneficiam de subsídios públicos as empresas que investem em empregos verdes. “Quando ouço ‘clima’, penso ‘empregos’”, disse Biden. Com efeito, o planeamento deve sempre concentrar-se no emprego e no trabalho.

Mas aumentar os impostos sobre o capital não basta. O que está em causa é alterar os padrões de consumo. Os governos distribuem apoios extraordinários às famílias carenciadas em vez de enfrentar a questão das hierarquias salariais. Ora, o aumento do preço dos bens essenciais não resulta só duma inflação temporária, tem também causas ecológicas. Ou alguém duvida de que o preço dos alimentos e da energia vai continuar a aumentar?

Os governos não podem subsidiar os salários baixos indefinidamente, devem investir os fundos disponíveis na transição ecológica e nas indemnizações pelas secas e pelas cheias. Se os mais ricos não aceitarem partilhar, diminuindo o seu consumo e poder de compra, o financiamento e a eficácia das políticas verdes ficam comprometidos. Neste contexto, o papel da Universidade é o de levar os estudantes a tomar consciência, por si, das necessárias mudanças de comportamento. Os seus padrões de vida serão irremediavelmente diferentes dos que prevalecem no presente.

Os autores de The Limits to Growth, editado em 1972, 1992 e 2004, perceberam que os números fornecidos pelo conhecimento científico não chegam para mobilizar os cidadãos, é necessário apelar a valores, dar o exemplo, e deixar de infantilizar os jovens com promessas de consumo.

François Mitterand disse, modesto: “Eu sou o último Presidente; depois de mim, só haverá contabilistas”.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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