David Jolicoeur, o rapper conhecido como Trugoy The Dove, ou apenas como Dave, e que ficará para a posteridade como um terço dos históricos De La Soul, morreu aos 54 anos. A morte foi noticiada pelo New York Times, citando o agente do grupo, Tony Ferguson, que não adiantou mais detalhes: desconhece-se a data exacta, o local e a causa do óbito. Era público que o músico sofria há vários anos de uma doença cardíaca.

Os De La Soul, grupo que Trugoy mantinha com colegas de liceu, o rapper Posdnuos e o DJ Maseo, foram figuras de proa do movimento Native Tongues ao lado de nomes como A Tribe Called Quest, Jungle Brothers ou Queen Latifah. Formaram-se em 1988 em Amityville, Long Island, Nova Iorque, e explodiram no ano seguinte com o álbum de estreia 3 Feet High and Rising.

Produzido por Prince Paul, que trouxe com ele vários skits humorísticos, uma característica pioneira que viria a contaminar os discos de rap das décadas seguintes, e com uma imagética feita de cores e flores (mas não eram hippies, deixavam bem claro), 3 Feet High and Rising é um clássico do hip-hop, com samples vindos de todo o lado – e não só dos clássicos disco e funk de muitos dos seus pares, indo beber a nomes como Steely Dan, Daryl Hall & John Oates, Otis Redding, Johnny Cash, Bo Diddley, Billy Joel e The Turtles. Foi desse disco que saiu o êxito Me, myself and I, com o qual a banda, nas últimas décadas, tem tido uma relação algo torturada.

De La Soul is Dead, o álbum seguinte, de 1991, era mais sombrio, a tentar enterrar essa imagem hippie​. Sem chegar aos números de vendas do antecessor, teve ainda assim êxitos como A roller skating jam named "Saturdays" e Ring ring ring (ha ha hey). Buhloone Mindstate, o terceiro disco, lançado em 1993, trouxe Breakadawn, êxito de dança na Europa. Foi o último a ser produzido por Prince Paul, que ainda assim voltaria a colaborar com o grupo depois.

Seguir-se-iam Stakes is High, em 1996, e Art Official Intelligence: Mosaic Thump, em 2000, que teve êxitos associados a telediscos memoráveis com rotação nos canais de televisão de música, como All good, com Chaka Khan, e Oooh., com Redman, single nomeado para um Grammy. Os De La Soul lançaram também AOI: Bionix, em 2001, The Grind Date, em 2004, com a memorável Rock Co.Kane flow, com MF Doom, Plug 1 & Plug 2 Present... First Serve, em 2012, e And the Anonymous Nobody..., de 2016, financiado com a ajuda de crowfunding, e um elenco de convidados que inclui nomes como 2 Chainz, Damon Albarn, David Byrne, Estelle, Little Dragon, Snoop Dogg, Jill Scott ou Pete Rock.

A banda apareceu ainda em temas de Queen Latifah ou dos Gorillaz (Feel good Inc., um êxito mundial em que a voz de Trugoy sobressai e que valeu ao grupo o seu único Grammy, dos seis para que foi nomeado, e Superfast jellyfish), bem como dos escoceses Teenage Fanclub (na grande experiência rap-rock que foi a banda sonora de Noite Maldita) ou DJ Shadow. Fora dos De La Soul, e em nome próprio, sem Posdnuos e Maseo, Dave apareceu em faixas de Chi-Ali, King Britt e Prince Paul

Consagrados pela crítica e tremendamente influentes, embora nem sempre com tradução directa em sucesso comercial, os De La Soul seriam contudo prejudicados pelo seu característico e intenso uso de samples antes de os quadros legais capazes de regulamentar essa prática de apropriação musical estarem cristalizados. Questões de direitos de autor e de reprodução, contratos antigos que não contemplavam o futuro do streaming e querelas públicas com as editoras, a Tommy Boy e Warner Brothers, foram outros factores que conduziram ao apagamento público da banda. Foi apenas há um mês que, com o grupo a obter propriedade legal das suas próprias masters, e depois de vários anos de negociações, se firmou um acordo entre editoras que permitirá a entrada do catálogo dos De La Soul nas plataformas de streaming, agendada para 3 de Março – alguns samples terão tido de ser regravados.

A longa e forçada ausência das plataformas digitais prejudicou gravemente a visibilidade e a saúde financeira dos De La Soul que, num gesto de frustração, em 2014, chegaram a enviar os seus seis primeiros álbuns por email a milhares de fãs. A chegada desses mesmos discos ao streaming permitirá a redescoberta, agora parcialmente póstuma, de uma das instituições mais peculiares e inovadoras do hip-hop.

“Rest in beats”

Ao longo da madrugada, foram-se avolumando as reacções à morte de David Jolicoeur no universo do hip-hop. Ahmir “Questlove” Thompson, baterista e mentor dos Roots, fã acérrimo dos De La Soul e apoiante das suas lutas no negócio da música, escreveu no Instagram, chamando à banda "um dos mais incríveis e bonitos produtos desta cultura do hip-hop" e agradecendo-lhe "pelas décadas de palhaçadas [e pelas] memórias divertidas" dos seus anos de adolescência. Aos De La Soul, acrescentou, se devem "os planos" que permitiram o seu encontro com Tariq Trotter/Black Thought, o rapper com quem fundaria os Roots.

No seu post, Thompson pede que a morte de Trugoy The Dove não seja "em vão": "É devastador o facto de ele não poder partilhar a glória nem testemunhar a magia [da difusão no streaming] do cânone inteiro [dos De La Soul] (sob a sua própria posse – uma jogada rara no hip-hop de que poucos se podem gabar) quando aqueles seis discos saírem no dia 3 de Março."

Também no Instagram, a cantora britânica Estelle agradeceu a Dave e desejou-lhe "uma viagem segura para a frente". No Twitter, o próprio Prince Paul disse que amava o seu "irmão" Dave e que foi "uma bênção terem tido a chance de se unirem outra vez". "De La Soul para sempre", rematou.

Já Chuck D, dos Public Enemy, publicou um vídeo dos dois a falarem e desejou que Trugoy The Dove "descanse em batidas". O produtor e executivo de animação Jason DeMarco lembrou um concerto de 1992 em Jacksonville, na Flórida, marcado por uma luta à faca entre os espectadores. Quando uma jovem foi ferida na cara, "os De La saltaram imediatamente para o meio do público, pararam o concerto e foram com ela até ao hospital". "Era quem eles eram", conclui.