“O cérebro humano é a causa, mas também a possível solução da crise climática”

A neurocirurgiã Ann-Christine Duhaime explica no livro Minding the Climate como a ciência pode ajudar a compreender o comportamento humano e, assim, a resolver a emergência ambiental.

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No livro Minding the Climate, a neurocirurgiã Ann-Christine Duhaime investiga o processo de tomada de decisão humano, e como ele afecta a acção climática TONY RINALDO/DR

A neurocirurgiã pediátrica Ann-Christine Duhaime passou mais de 35 anos a operar pequenos cérebros. A crise climática fez com que repensasse onde deveria investir a maior parte do seu tempo. Podia continuar a salvar pacientes todos os dias no Hospital Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos, mas este trabalho seria contraditório, se não tentasse também garantir um futuro habitável para crianças e jovens.

Assim começou o trabalho de investigação que culminaria no livro Minding the Climate (Harvard University Press, 2022), que explora como a neurociência pode ajudar a compreender o comportamento humano e, assim, a resolver a emergência ambiental em que estamos mergulhados. O título, em português, seria algo como “cuidando do clima” – explorando a polissemia da palavra mind, que pode significar tanto “mente” como “cuidar”.

Nesta entrevista ao PÚBLICO, realizada por videoconferência, Ann-Christine Duhaime explica como o sistema de recompensa humano privilegia a gratificação imediata. Gostamos viajar, fazer compras e comer bem. Apreciamos não só uma casa quente no Inverno, mas também fresca no Verão. Daí não viria qualquer mal ao mundo, se todos estes desejos de consumo, ou bem-estar, não estivessem associados à emissão de gases com efeito de estufa ou à produção de resíduos. Já os comportamentos frugais podem ser a antítese da satisfação, não gerando o mesmo tipo de compensação neuroquímica.

Para travar desastres climáticos, a médica defende que temos de influenciar o nosso cérebro, a fim de que este órgão desenhado pela evolução para favorecer a sobrevivência e o sucesso reprodutivo se torne, ele próprio, sustentável. Duhaime acredita que o cérebro humano é “suficientemente flexível”, sendo possível sobrepor o viés racional aos mecanismos neurológicos que premeiam prazeres a curto prazo. A especialista garante ainda que aqueles que defendem o planeta servem de modelo, influenciando inconscientemente a teia social que os rodeia. ​

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"Tendemos a nos sentir mais recompensados pelas escolhas que, na altura em que os nossos cérebros estavam a ser desenhados pela evolução, aumentavam a nossa chance de sobrevivência e reprodução", refere a autora de Minding the Climate Star Glade Vintage/DR

“Estes sons de tambor que estamos a ouvir, que ressoam a cada novo fogo florestal, a cada nova inundação, estão a entrar no circuito neuronal. Mudam a forma como pensamos, podem mudar as prioridades que estabelecemos. E cada um de nós que já mudou o próprio pensamento sobre a crise climática pode ajudar a facilitar essa mudança nos outros”, assegura.

O livro Mindind the Climate deixa-nos com a sensação de que o cérebro humano é um equipamento obsoleto para lidarmos com a crise climática dos nossos dias. Faz sentido?
Sim e não. É um equipamento antiquado na medida em que, na escala de tempo evolucionário, o processo que formou o nosso cérebro é demasiado longo, se comparado com o período extremamente curto, condensado, em que surgiu a crise que vivemos. A emergência climática representaria um milionésimo de segundo no tempo evolutivo. Estes processos que permitem a qualquer organismo, vegetal ou animal, adaptar-se ao ambiente têm uma dimensão temporal longuíssima, ao passo que as alterações climáticas ocorreram demasiadamente depressa. Não quero deixar a impressão de que o cérebro humano está ultrapassado – não está.

Há um desacerto?
Sim, há aqui uma incompatibilidade em termos de escala de tempo. A forma como vivemos hoje, graças à extraordinária capacidade que temos de mudar o mundo, é muito diferente do estilo de vida que tínhamos, quando os nossos cérebros estavam a ser “ajustados” pela evolução. As experiências sensoriais e cognitivas com as quais lidamos hoje todos os dias divergem, de algum modo, das circunstâncias evolutivas que causaram esses ajustes. Não quero transmitir a ideia de que o encéfalo é como um telemóvel velho, com cinco versões por actualizar. O cérebro humano é extraordinário. A questão é que a humanidade criou um contexto novo, que é esta ameaça terrível que estamos a viver, no qual o cérebro está a ter grande dificuldade em funcionar.

Faz a apologia de um cérebro sustentável. O que é isso?
Quando as pessoas ouvem falar de um cérebro sustentável, pensam muitas vezes em viver 200 anos sem perder a memória, ou a capacidade cognitiva – mas não é disso que estamos a falar aqui. Aquilo que pretendo transmitir com este conceito, à luz da intersecção entre o cérebro humano e a crise climática, está ligado à possibilidade de mobilizarmos as nossas capacidades cerebrais para solucionar este problema. E isto significa seleccionar conscientemente as nossas atitudes, ou ajudar outras pessoas a fazê-lo, influenciando escolhas comportamentais. O cérebro humano representa simultaneamente a causa e a possível solução para este grande desafio climático. Temos de mobilizar capacidades cognitivas que não usaríamos naturalmente numa crise.

Quais os caminhos que temos de trilhar para termos um cérebro sustentável?
Antes de mais, devo dizer que o livro é baseado no que tem sido publicado na literatura científica. Nenhuma destas ideias é minha. O que fiz foi investigar e reunir o trabalho feito na área das neurociências, ciências climáticas e comportamentais.

E das ciências sociais também.
Sim, marketing e publicidade. E ainda do desenvolvimento infanto-juvenil. Tudo para compreender melhor como fazemos escolhas. O conceito de um cérebro sustentável baseia-se na ideia de que, regra geral, existem algumas tendências de comportamento. É claro que existe uma certa variabilidade de pessoa para pessoa, e até num mesmo indivíduo ao longo do tempo. Contudo, de uma forma geral, tendemos a sentirmo-nos mais recompensados pelas escolhas que, na altura em que os nossos cérebros estavam a ser desenhados pela evolução, aumentavam as nossas chances de sobrevivência e reprodução. Mas há partes do nosso cérebro que se desenvolveram mais tarde na evolução. Coisas como análise cognitiva, por exemplo – tomar uma decisão racional pode não ser algo tão gratificante.

Pode dar um exemplo?
Imagine que é um director-geral de uma empresa. Tem de tomar uma decisão relativa a um grande investimento que vai tornar a empresa mais amiga do ambiente. Este novo processo vai reduzir as toxinas libertadas, a produção de resíduos sólidos e a pegada carbónica da cadeia produtiva – mas também vai diminuir as margens de lucro. É uma decisão muito difícil. Quais são as recompensas aqui? Quem atribui prémios é o conselho de administração, uma estrutura que tende a querer que a margem para os accionistas seja tão grande quanto possível. Este director vai ter de tomar uma decisão que está na contramão das recompensas clássicas.

Quais são as recompensas clássicas?
Pode ser, por exemplo, a ideia de que vamos estudar muito para depois progredir, investir, ir mais longe. Ganhar dinheiro, construir uma casa maior para mostrar aos colegas ou o que quer que seja. Comprar um carro potente. Já a decisão de investir num processo mais amigo do ambiente, mas que gera menos dinheiro não traz a mesma sensação de recompensa de outras decisões que aquele director tomou no passado. Uma decisão pró-ambiental não é tão gratificante. Até pode ser, se a pessoa for muito altruísta ou tiver uma recompensa social por ter tomado esta decisão. Mas ao conselho de administração certamente não recompensará tomar esta decisão. E o director até pode pôr o seu emprego em risco. Contudo, este profissional tem a capacidade intelectual para saber que esta é a coisa certa a fazer, para tomar uma decisão informada. As partes mais cognitivas do cérebro têm essa capacidade de se sobrepor aos mecanismos cerebrais que condicionavam decisões na pré-história da humanidade. Em parte, é disso que estamos a falar, quando falamos do cérebro sustentável.

Estas decisões parecem exigentes. Muitos de nós terão dificuldade em fazer isso, não?
Isto é absolutamente verdade. Não é fácil convencer as pessoas. Mas o livro é precisamente sobre o que a ciência diz sobre como as pessoas formam opiniões ou mudam de ideias. Vou dar um exemplo: estudos mostram que temos maior probabilidade de sermos influenciados por pessoas que conhecemos do que por alguém desconhecido que se apresenta como uma autoridade no assunto.

Imagine que estamos a remodelar a casa e vamos pôr janelas novas. Um vizinho diz que recorreu a uma marca óptima e que, por acaso, até tem boa eficiência energética, fazendo baixar a factura da electricidade. É provável que escolhamos as mesmas janelas do vizinho. Como realmente formam as pessoas uma opinião? Como mudam de comportamento? Não é como um interruptor, sim ou não, ligado ou desligado. As nossas decisões são baseadas em milhões de eventos independentes, a maioria deles abaixo do nosso nível de consciência.

É por isso que a primeira parte do livro é sobre o que sabemos hoje sobre os processos de decisão, como estes mecanismos funcionam ao nível celular. Descobrimos que é muito mais complexo do que podemos imaginar. As nossas decisões são baseadas numa série de coisas arbitrárias: o último filme que vimos, o que comemos ao pequeno-almoço, o que sabemos sobre os nossos antepassados – experiências das quais nem sequer temos noção, mas que afectaram mecanismos epigenéticos que influenciam a função cerebral. Sabemos que informação é importante – mas como recebem as pessoas a informação, e de quem, e como ela é apresentada? Todos estes aspectos influenciam que tipo de decisão que vamos acabar por tomar.

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A evolução "desenhou" os mecanismos neurológicos para que haja recompensas moleculares após decisões que favoreçam a sobrevivência ou o sucesso reprodutivo - e isso explica, em parte, porque razão escolhas ecológigas não são tão gratificantes Coli Noob/DR

Já deu o exemplo do director-geral que, para fazer uma opção sustentável, terá de abrir mão de recompensas clássicas. Mas como é que essa gratificação tardia, em nome do clima, pode ser colocada em prática em comunidades alargadas?
Exploro em detalhe no livro o exemplo de uma organização local que surgiu na minha área e que, agora, se tornou nacional. Chama-se Mothers Out Front. Essa associação motiva as pessoas não apenas a mudar coisas nas próprias vidas, mas também a lutar por mudanças políticas numa escala maior. Portanto, proporciona dois tipos diferentes de recompensa. E isto ajuda a tornar mais imediata a gratificação tardia de um planeta melhor.

A primeira recompensa está ligada à preocupação com os filhos. Existe algo mais importante do que o futuro dos filhos? É este o gancho emocional: promovo causas ambientais porque estou preocupado com os problemas climáticos que as minhas crianças terão de enfrentar no futuro. Então, aquilo que vai sensibilizar as pessoas a serem agentes de mudança é algo muito tangível, que podemos ver à nossa frente: os nossos filhos. Eles são a motivação.

E qual é a outra?
A outra gratificação é a interacção com participantes extraordinários. Há uma recompensa social forte, e duradoura, que são os outros pais e mães que também se preocupam com o futuro dos filhos. A união de pessoas com preocupações comuns forja laços significativos. Está demonstrado que o vínculo social, tanto em humanos como em outros animais, pode ser uma recompensa extraordinariamente poderosa. Então, embora a recompensa climática não seja imediata, dispomos de uma comunidade coesa e essa recompensa social acontece no presente.

Na verdade, há uma terceira recompensa, que consiste na aprendizagem de novas competências. Há formações no Mothers Out Front que ensinam estes pais a fazer lobby junto dos governos, a abordar um político e adquirir os instrumentos que importam na luta climática. Todas estas ferramentas podem, de algum modo, ser utilizadas noutras esferas das nossas vidas. É uma recompensa no presente que pode tornar as pessoas mais capacitadas.

Escreve no livro que, num dado momento da sua carreira como neurocirurgiã pediátrica, decidiu que fazer algo pelo planeta se tornou “imperativo”. Como foi este processo?
Acho que esta preocupação sempre esteve lá. Com a crise climática, esta inquietação tornou-se mais visível. As vozes científicas começaram a falar mais alto e mostravam que estávamos a caminhar progressivamente na direcção errada. Aos meus olhos, parecia incoerente permitir que estas crianças vivessem sem lhes garantir um futuro habitável, com condições. Tornou-se uma contradição muito grande. Acho que é isso.

Uma coisa interessante é que, na altura, a maioria dos meus colegas não partilhou deste sentimento. Achavam que [a luta ambiental] era o trabalho de outras pessoas e que o trabalho deles era a medicina; que tínhamos de ficar na nossa área, que era o que sabíamos fazer melhor, sem metermos foice em seara alheia.

Achavam que havia coisas mais importantes a fazer.
Sim, e era verdade, do ponto de vista individual, do paciente. Mas, numa perspectiva colectiva, o que pode ser mais importante que o planeta? Senti que não poderia ignorar esta crise. Simplesmente não conseguia. É muito duro abandonar a neurocirurgia, porque é uma actividade muito stressante mas que traz muitas recompensas. Contudo, cheguei a um ponto crítico. Então tive de juntar as duas coisas: as neurociências e o clima.

Abandonou a neurocirurgia?
Ainda vejo pacientes e tenho este tipo de recompensa, mas já não faço muitas cirurgias, embora ainda o fizesse na altura da escrita do livro. Senti que devia isso às crianças que amo e também a todas as outras crianças. Quis pôr neste problema a energia que tiver ao longo de todas as décadas que me restam.

Um dos capítulos do livro é dedicado ao projecto Hospital Pediátrico Verde. Quando o livro foi publicado, ainda não havia financiamento. Há novidades?
O Hospital Pediátrico Verde foi o meu caso de estudo. Trabalho num estabelecimento de saúde excelente, o Hospital Geral de Massachusetts, que trata pacientes de todas as idades – mas que não tem um edifício separado para a pediatria. As crianças estão espalhadas pelo hospital. Há unidades específicas mas que estão geograficamente separadas umas das outras. Tenho uma forte convicção de que os cuidados seriam facilitados, se as crianças estivessem todas no mesmo espaço físico.

Tive a ideia de resolver o problema da falta deste espaço e, ao mesmo tempo, fazer algo em prol do ambiente. Se conseguisse convencer a direcção do nosso hospital, poderíamos criar o primeiro hospital pediátrico do mundo com emissões zero. A ideia era que pudéssemos ser produtores de energia, ter muitos espaços verdes e ser o mais sustentáveis possível.

Contudo, como sempre, um hospital geral que atende adultos e crianças tem muitas prioridades. Os patrocinadores que pensávamos que poderiam estar interessados num projecto como este eram necessários para outras coisas que estavam no topo da lista de prioridades. Então, para responder à questão, o projecto está meio parado. A pandemia também não nos ajudou muito neste processo.

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A autora acredita que há um descompasso entre a velocidade em que precisamos agir para deter a crise climática e o tempo necessário para mudarmos comportamentos colectivos Geralt/DR

O que a surpreendeu durante esta investigação?
Muitas pessoas esperavam do livro uma mensagem pronta para levar para casa, procuravam receitas rápidas, faça isto ou aquilo. Mas o Minding the Climate não tem esse objectivo. A ideia era pôr a seguinte questão: será que se investigarmos como tomamos decisões, como o nosso cérebro está desenhado para funcionar, isto nos ajudará a ter ideias de como solucionar o problema?

Creio que aquilo que me surpreendeu é que a resposta não é niilista, não é algo do género: “Ah, esta é natureza humana”, “Somos assim, não há nada a fazer”, “Nunca conseguiremos ultrapassar o nosso egoísmo”. Terminei a pensar que isto não é necessariamente verdade: os nossos cérebros são extraordinários e, de facto, são suficientemente flexíveis.

Estes sons de tambor que estamos a ouvir, que ecoam de profissões como a vossa – jornalistas climáticos –, que ressoam a cada novo fogo florestal, a cada nova inundação, onda de calor, estão a entrar no circuito neuronal. Mudam a forma como pensamos, podem mudar as prioridades que estabelecemos. E cada um de nós que já mudou o próprio pensamento sobre a crise climática pode ajudar a facilitar essa mudança nos outros.

É a mensagem que gostaria que os leitores guardassem?
A mensagem para os leitores é: não subestime o seu próprio impacto noutras pessoas – mesmo que não seja perceptível, mesmo que não se veja. As coisas que fazemos, as coisas em que acreditamos, afectam as pessoas ao redor. Isto é uma coisa neurológica. Somos fortemente “desenhados” para influenciar o que nos rodeia. Não desvalorize isso. As mentalidades mudam. E nós estamos a contribuir para essa mudança. E, como já disse, junte-se às pessoas que pensam da mesma forma, que estão preocupadas com o planeta – caso contrário, podemos perder o ânimo.

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