Na rota dos vinhos (e de diferentes terroirs) da Madeira

Dos vinhos Madeira da Blandy’s e da Barbeito, na zona Sul da ilha, ao Verdelho plantado em Terras do Avô, no Seixal, e ao hotel que une o wellness aos vinhos na Boa Ventura, na costa Norte da ilha.

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A Quinta de Santa Luzia, da Blandy's (Madeira Wine Company), é um "óasis" no meio da malha urbana do Funchal Gregório Cunha

O enoturismo na Madeira começa a ser um assunto sério e uma fatia importante do negócio de vários produtores de vinho na ilha, seja vinho Madeira, seja vinho tranquilo. A recém-criada Rota dos Vinhos quer impulsionar o desenvolvimento de uma actividade que explora uma ligação óbvia – entre os vinhos feitos da região, em solos vulcânicos e em vinhas de areia também, e o turismo –, mas está ainda numa fase embrionária. O trabalho de formiguinha de alguns – anterior à criação do novo mapa-brochura –, esse, vem lá de trás, e já dá frutos.

Em dois dias, traçámos o nosso próprio roteiro, meia dúzia de propostas numa volta à ilha (o Porto Santo fica para outras núpcias) que nos levou a descobrir uvas que não associávamos à Madeira – como o Bastardo e o Arnsburger –, a rever alguns pioneiros e a conhecer excitantes projectos que estão quase, quase a nascer. Seguindo o sentido dos ponteiros do relógio, começamos pela Blandy’s, no Funchal.

A quinta no meio da cidade

A Blandy's foi fundada em 1808 pelo inglês John Blandy, mas a Madeira Wine Company tem mais história, uma vez que detém a marca mais antiga de vinho Madeira, a Cossart Gordon, criada em 1745. Aberto aos turistas desde que há memória, o Lodge da Blandy’s é um clássico, e por isso local de visita obrigatória. Depois da renovação, a partir de 2015, para além do envelhecimento de vinho, é possível ver ali o museu da família Blandy, fazer uma visita privada, provar vinho Madeira a copo (dos mais jovens a um Boal centenário), conhecer os vinhos tranquilos da Atlantis e até ficar a dormir. Entre os vinhos que pode comprar, há ainda os Madeiras da Miles e da Leacock’s, hoje no portefólio da Madeira Wine.

Nos tranquilos, vale a pena provar o tinto feito de Tinta Negra, casta mal-amada na ilha e utilizada historicamente para dar volume às produções de vinho Madeira (representa hoje mais de metade do encepamento da região com Denominação de Origem e Indicação Geográfica), para a qual tem vindo a despertar quem faz vinhos tranquilos. “Uma casta tão nobre como outra qualquer”, a Tinta Negra – “o Molar da zona de Sintra e Colares”, que “chegou primeiro ao Porto Santo” e só depois à Madeira – dá um vinho “muito leve”, “elegante”, com pouca cor, como ditam hoje as tendências, explica-nos Francisco Albuquerque, enólogo da Madeira Wine Company há mais de 30 anos.

Francisco conta que este tinto só passou a fazer parte do portefólio da Atlantis em 2019 (juntando-se ao rosé da mesma casta, feito ininterruptamente desde 1991 e cuja produção este ano será de 100 mil garrafas, e aos dois brancos de Verdelho), depois de surgir a vinha perfeita. “Encontrámo-la no Campanário. São uvas muito específicas de vinhas velhas, que dão vinhos com grau máximo de 12 graus.”

A cinco minutos de carro das adegas, é possível visitar a Quinta de Santa Luzia, adquirida em 1826 por John Blandy, e onde em 2005 as bananeiras deram lugar às vinhas (no sentido contrário ao que hoje vemos acontecer em Câmara de Lobos, o concelho com mais área de vinha da Madeira, 151 hectares). As visitas turísticas começaram cinco anos depois. “Aqui, temos um oásis dentro do Funchal”, começa por sublinhar a guia Rita Azevedo, antes de nos situar: estamos a 120 metros de altitude, a humidade do ar é elevada, e “às vezes, no mesmo dia”, é possível experienciar “sete microclimas diferentes”. Nesse clima esquizofrénico dão-se bem, ali, naquele hectare de vinha no meio da cidade e com vista para a baía, o Terrantez, o Verdelho, o Boal e algum Sercial, quatro das castas recomendadas para a produção de vinho Madeira, explica a responsável, na empresa desde 1995.

Nas adegas da Blandy's é possível provar vários vinhos Madeira a copo, de um vinho jovem com três anos até um Boal de 1920,Nas adegas da Blandy's é possível provar vários vinhos Madeira a copo, de um vinho jovem com três anos até um Boal de 1920 Gregório Cunha,Gregório Cunha
No Lodge da Blandy's, no Funchal, fica parte do envelhecimento de vinho Madeira desta casa tradicional Gregório Cunha
Desde que há memória que as adegas da Blandy's, na Avenida Arriaga, coração da baixa do Funchal, estão abertas ao público Gregório Cunha
Nas adegas da Blandy's, no Funchal, há também um museu e, claro, uma loja, onde é possível comprar vinhos das várias marcas da Madeira Wine Company (Cossart Gordon, Miles, Leacock’s e Atlantis) Gregório Cunha
Ir à blandy's é ter a oportunidade de provar também os vinhos tranquilos que a Madeira Wine Company e o enólogo Francisco Albuquerque fazem, com a marca Atlantis Gregório Cunha
Francisco Albuquerque é enólogo da Madeira Wine Company há mais de 30 anos Gregório Cunha
A cinco minutos de carro do Lodge da Blandy's, fica a Quinta de Santa Luzia, de onde saem os Boais da Madeira Wine Company. Um "oásis" no meio da cidade do Funchal Gregório Cunha
Pedro Lima é o responsável de viticultura da Madeira Wine Company. No início do ano, colocou ovelhas na Quinta de Santa Luzia, para ajudar no controlo das infestantes Gregório Cunha
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Nas adegas da Blandy's é possível provar vários vinhos Madeira a copo, de um vinho jovem com três anos até um Boal de 1920,Nas adegas da Blandy's é possível provar vários vinhos Madeira a copo, de um vinho jovem com três anos até um Boal de 1920 Gregório Cunha,Gregório Cunha

Para além de “explicar as castas e o estilo de vinho [Madeira] a que cada uma dá origem” e de sublinhar “a raridade” do licoroso, Rita vai explicando, ao longo da visita, como a quinta está em modo de produção biológica, apesar de a produção não estar certificada como tal, como a primeira casta a chegar à Madeira foi a Malvasia Cândida, vinda de Cândia, hoje Creta, no século XVI (em Santa Luzia não vingou a certa altura, mas actualmente há um plano para recuperar ali a variedade), como a propriedade tem água o ano inteiro graças às levadas, como ali chovem 500 a 600 milímetros por ano.

Quem lá for por estes dias, e até 15 de Março, verá ovelhas nas vinhas, uma novidade introduzida no início do ano, para ajudar no controlo das infestantes (na zona Norte, há outra quinta a fazê-lo, a Quinta do Barbusano, há já uns seis anos), conta-nos o responsável pela viticultura, Pedro Lima. Quem esperar pelo final do Verão, apanhará o Blandy's Wine Festival, evento que inclui uma vindima nocturna (“toda manual”) e jantar na quinta — este ano, será entre 5 e 9 de Setembro; ainda não há um preço definido.

Entre Agosto e Outubro, as visitas à quinta são regulares e combinadas com a visita às adegas; no resto do ano também é possível lá ir, mas apenas por marcação. Das vinhas de Santa Luzia, com um hectare, “saem os Boais". "Temos quase 8 toneladas [de Boal] aqui no Funchal, que é uma coisa inusitadaa”, refere-nos Francisco Albuquerque. E, até ao Verão, a Blandy's deverá ter nova oferta de enoturismo na zona Norte (e é tudo o que podemos escrever, para já).

Visitas ao Lodge entre 12,5 e 95 euros (tour privada) e vinho Madeira a copo entre 1,90 (3 Anos) e 171,50 euros (Blandy’s Boal 1920), de segunda a sexta, das 10h às 18h30. Apartamentos no Lodge entre 95 e 125 euros / noite; casas na quinta a partir de 1289 euros uma semana para quatro pessoas. As visitas à quinta custam 25 euros, com transporte, visita e prova de vinhos no regresso ao Lodge.

Próxima paragem: Câmara de Lobos

No parque empresarial do Estreito de Câmara de Lobos, fica a Barbeito, do enfant terrible Ricardo Diogo Freitas (e dos sócios e amigos Kinoshita), o único produtor da Madeira a engarrafar Bastardo, casta que, com alguma surpresa, fomos encontrar na pérola do Atlântico. É outra variedade recomendada para vinho Madeira, mas existem pouquíssimas videiras na ilha. As uvas que Ricardo usa para este vinho Madeira diferente são de um parceiro na costa Norte, em São Jorge. É a mancha maior de Bastardo na Madeira (1,6 hectares) e uma de apenas duas vinhas (há mais Bastardo, nada que se compare, na Quinta das Vinhas, na Calheta, já lá vamos). E o produtor conta no rótulo essa história e a da família que cultiva as uvas, como faz por norma nos seus vinhos.

"O Bastardo já esteve quase extinto aqui na Madeira. Chegou a haver nos anos 1930, 1940, até aos anos 1950, penso que depois as empresas não mostraram grande interesse em ter essa casta, então os viticultores desistiram", conta o produtor e enólogo. Não só Ricardo viu interesse nesta uva difícil mas "versátil", como incentivou o parceiro a plantá-la, em 2004. A primeira colheita foi em 2007, já lá vão três engarrafamentos. "Na altura começou era a febre do Terrantez e eu, que já por norma não gosto de ir atrás de modas, lembrei-me que o Bastardo era uma opção."

Ricardo não engarrafa sempre, está bom de perceber, mas vai experimentando, com os 3000 litros que a vindima rende por ano, e tem até Bastardo de curtimenta. Visitar a adega no Estreito é ter a possibilidade de provar este vinho meio seco (ao contrário de outras castas, esta poderia dar vinhos do seco ao doce, mas o produtor segue sempre as suas preferências, numa lógica de que "alguém no mundo" terá gostos parecidos com os seus), assim como outros Madeiras "fora da caixa" — por exemplo, o Malvasia Cândida Reserva Especial, feito com uvas da tal casta original, colhidas na Fajã dos Padres, um sítio especial onde foi introduzida pela mão dos Jesuítas — e mesmo os vinhos tranquilos que tem feito, em equipa com a enóloga Mariana Salvador, e cuja produção vai quase toda lá para fora.

Três vinhos brancos, feitos de Verdelho, um colheita e um reserva, com algum Sercial, porque, entende Ricardo, "nenhuma acidez é de mais", e um "vinho de quinta", o Vinhas do Lanço. Coisa de nicho, já que, num ano em que lance os três ("só faço se estiver mesmo bom, porque senão não vale a pena fazer"), são 6.000 garrafas, que vão já para 11 países. Por cá, só ficam "dez a 20 por cento" dessas garrafas.

Ricardo Diogo Freitas, produtor e enólogo dos vinhos Barbeito Gregório Cunha
O laboratório de Ricardo Diogo Freitas, na Barbeito, onde o produtor guarda amostras de todos os vinhos Madeira em envelhecimento. "Cada pipa é provada três a quatro vezes por ano. Tenho um sistema rotativo e as amostras são renovadas" Gregório Cunha
A Barbeito é uma casa cheia de projectos especiais, tantos quantos os rótulos (cujas ilustrações base saíram do branding project de 2012). Para 2023, o "irrequieto" Ricardo Diogo Freitas prepara vários novos lançamentos Gregório Cunha
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Ricardo Diogo Freitas, produtor e enólogo dos vinhos Barbeito Gregório Cunha

Os visitantes percorrem — não com Ricardo, é certo, mas com o afável Leandro Gouveia, quem normalmente recebe os turistas — também a parte da produção e o armazém de canteiro onde envelhecem os Madeiras desta casa cheia de projectos especiais, outros tantos rótulos, e uma história relativamente recente, apesar de tão rica. É perceber também a tecnologia e empreendedorismo que está por detrás destes vinhos: as actuais instalações surgiram em 2008 e desde então o "irrequieto" Ricardo tem-nas melhorado cada ano. Uma das novidades mais recentes é curiosamente... um lagar para pisa a pé: "posso fazer o vinho como se fazia há 200 anos e há 100 anos". Mas há para lá verdadeiras engenhocas como as cubas de inox com camisas que permitem controlar o calor que é dado ao vinho Madeira e, no fundo, acelerar e controlar de forma mais rigorosa o processo de canteiro ou estufagem.

Fundada em 1946 pelo avô de Ricardo, Mário Barbeito de Vasconcelos​, a Barbeito "esteve quase a falir por causa do negócio de vinho a granel", como conta Ricardo, e a decisão de terminar com o granel e apostar em engarrafar com qualidade e em nome próprio, em 1991, mudou o curso da empresa. Isso e a entrada da família japonesa para a sociedade. Não quer isso dizer que não haja stock de vinhos antigos, anteriores a esse virar de página. Este ano, por exemplo, a Barbeito vai lançar colheitas de 1981 e 1989 (este foi o ano em que Ricardo Diogo começou a trabalhar com a família, 27 anos, na altura em part-time. Provas de Madeiras Silver (5 euros), Gold (12,50 euros) e Platinum (22,50 euros), de segunda a sexta, em três horários preferenciais, respectivamente: 14h30, 15h30 e 11h30. Provas de vinhos tranquilos sob consulta.

Hotel, mesa e um antigo campo ampelográfico

Ainda a Sul, no Estreito da Calheta, a Quinta das Vinhas oferece uma experiência única: a de poder ficar a dormir numa quinta-retiro, com uma história incrível, vista desafogada para o mar, boa gastronomia e uma carta de vinhos que privilegia os vinhos da Madeira.

Na quinta que já foi um importante campo ampelográfico, onde ainda hoje é feita investigação, os Welsh tem uma proposta condizente com a sua própria filosofia de estar na vida. A explorar a quinta desde 2017 (o hotel de campo já existe há uns 25 anos, mas as vinhas foram durante anos exploradas pelo Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira), a família, cuja história na Madeira remonta ao século XVIII, não só se aventurou no modo de produção biológica, como está já a experimentar a biodinâmica.

Em Abril, em parceria com a Justino's vão lançar o primeiro vinho tranquilo biológico da Madeira, de Verdelho. E têm vindo a aumentar a área de Bastardo, plantada no tempo do campo ampelográfico. Não chega a 1 hectare, mas no futuro é bem provável que estas uvas venham a ser engarrafadas como um tranquilo Fanal, a nova gama da Justino's para "vinhos fora da caixa".

A sustentabilidade não é perseguida só na viticultura. As dez casinhas espalhadas pela propriedade de 4 hectares, que vieram aumentar a capacidade do hotel que arrancou com a casa principal, um imóvel do século XVII, foram construídas com pedra e madeira provenientes de demolições. "E isto há mais de 20 anos", nota Isabel Welsh, que nos fala, com entusiasmo, de uma novidade bem mais recente. "Temos agora outro complemento: começamos a ter pessoas que vêm fazer retiros e temos ioga e aiurvédica."

No restaurante Bago, têm "quase todos os vinhos tranquilos produzidos na Madeira" e "alguns do continente, dando [nesse caso] sempre uma preferência a biológicos". "Quem vem cá quer experimentar os vinhos que são produzidos na Madeira, não é?" É sim. Ficar na Quinta das Vinhas pode custar entre os 115 e 200 euros (com pequeno-almoço) por noite na casa principal e entre 120 e 210 euros (sem pequeno-almoço) nas casinhas. Preço médio no Bago andará nos 25 euros, sem bebidas. As provas são personalizadas, com preço sob consulta.

Isabel e Catarina Welsh, junto à casa principal da Quinta das Vinhas, onde o projecto de turismo há 25 anos começou com seis quartos. Hoje são 24, no hotel e nas casas de campo Gregório Cunha
A Quinta das Vinhas fica no Estreito da Calheta, na zona Sul da ilha Madeira: tem hotel, vinhas de um antigo campo ampelográfico, vista para o Atlântico e um restaurante que privilegia os vinhos feitos na região Gregório Cunha
Na Quinta das Vinhas, a família Welsh, que já está a fazer vinho Madeira e um tranquilo biológico de Verdelho, numa parceria com a Justino's, tem vindo a aumentar a área de Bastardo Gregório Cunha
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Isabel e Catarina Welsh, junto à casa principal da Quinta das Vinhas, onde o projecto de turismo há 25 anos começou com seis quartos. Hoje são 24, no hotel e nas casas de campo Gregório Cunha

No Seixal, "vinha boa" e boa teimosia

Na costa Norte, encontrámos um grupo de turistas que, à boleia da Wine Tours Madeira e da contadora de histórias Sofia Maul, foram ter ao Seixal, Porto Moniz. No alpendre da Terras do Avô, perguntavam a Sofia Caldeira que área de vinha tinha a família. "Temos 3,5 hectares, em 33 parcelas, entre as quais uma que tem apenas 19 metros quadrados. Para chegar lá, temos de subir muitos degraus antigos, de veredas, que são altíssimos. Da estrada até lá, são uns dois minutos, quase." Nova pergunta: "Porque fazem vinho aqui?" A engenheira agrícola, como o pai, ainda ensaiava a resposta, quando ouvimos a guia, a outra Sofia, atalhar assim: "Basicamente, por causa deste senhor aqui".

Duarte Caldeira, hoje com 80 anos, é outro irrequieto que começou a produzir vinho em nome próprio na vindima de 2002, aos 60. Foi pioneiro quando, numa região onde "tudo é difícil", viu e decidiu explorar o potencial da casta Verdelho — "não é Verdejo, nem Gouveio, é Verdelho", faz questão de ressalvar — na produção de vinhos brancos. E foi pioneiro quando lançou o primeiro espumante madeirense, em 2016. Enquanto nos vinhos tranquilos, trabalha com Paulo Laureano, como enólogo consultor, no espumante a frutuosa teimosia foi mesmo sua. "Fui para a Bairrada aprender e ver como é que eles faziam". Um deles sendo Luís Pato, produtor que o encorajou. Resultado: o espumante Terras do Avô já arrecadou "aí umas dez medalhas" em concursos.

Duarte Caldeira e a esposa recebem às vezes os turistas, mas não é habitual. Ele anda sempre em cima da vinha e "destina" diariamente os cuidados a ter com cada pé de videira. O enoturismo, a promoção e toda a burocracia do negócio são assumidas por Sofia. De maneira que ouvi-lo é sempre um privilégio. Algumas das histórias que conta estão já em livro, no título A Agricultura Madeirense e Eu, lançado durante a pandemia e que fala da vinha, mas também de bananeiras e da cultura de cana-de-açúcar. E onde relata momentos de mudança, como aquele que protagonizou quando ajudou outros viticultores do Seixal (40 projectos, para ir buscar 50 por cento ao Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, num total de 13 hectares) a reconverter o Jaquet, usado para produzir o vinho seco, em "vinha boa".

Duarte Caldeira (Terras do Avô) é um dos nomes incontornáveis quando se fala de vinhos da Madeira, aos 60 anos (já lá vão 20) aventurou-se a fazer vinho tranquilo de Verdelho na costa Norte da ilha. É seu também o primeiro espumante madeirense Gregório Cunha
Sofia Caldeira divide o dia-a-dia da Terras do Avô com o pai Duarte, ele na vinha, ela no enoturismo, na promoção e na burocracia Gregório Cunha
Os dois vinhos de entrada da Terras do Avô, um tinto e um branco, e o espumante engarrafado pelos 80 anos do produtor Duarte Caldeira. Os rótulos são, desde o início do projecto, desenhados pelo artista plástico madeirense Marco Fagundes Gregório Cunha
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Duarte Caldeira (Terras do Avô) é um dos nomes incontornáveis quando se fala de vinhos da Madeira, aos 60 anos (já lá vão 20) aventurou-se a fazer vinho tranquilo de Verdelho na costa Norte da ilha. É seu também o primeiro espumante madeirense Gregório Cunha

Os Caldeira recebem por marcação, para provas (a partir de 17,50 euros por pessoa) e almoços mais elaborados (a partir de 50 euros por pessoa), mas o enoturismo, iniciado há uns dez anos, "já representa 20 e tal por cento" do negócio e Sofia tem planos para remodelar uma garagem contígua à casa no Seixal (a vinificação é feita na adega pública de São Vicente) e "ver até que ponto é que seria viável ter alguma coisa aberta todos os dias".

Vinhos, bem-estar e natureza na Boa Ventura

Numa espécie de fim do mundo, mesmo numa ilha onde hoje é facílimo chegar de um sítio a outro, o Terra Bona Nature & Vineyards, "mais do que um enoturismo, é um projecto de wellness", explica-nos Marco Noronha Jardim, o proprietário que há um ano deixou um emprego estável na banca para perseguir o "sonho de juventude".

O sonho não era produzir vinho, era ter um projecto hoteleiro, descontraído, junto ao mar. Na Boa Ventura, São Vicente, não estamos longe. Do novo hotel, conseguimos vê-lo. São quatro villas, uma por socalco, exclusivas, e onde a privacidade e o relaxamento, apenas interrompido pelos sons de um ribeiro e dos pássaros, são as palavras de ordem. E uma adega boutique, onde serão vinificados dois dos três vinhos actualmente no portefólio.

Marco e a esposa Maria João, também bancária, compraram a terra em 2015, havia para lá vinhas, com uns 30 anos, de Arnsburger, um cruzamento entre dois clones de Riesling, desenvolvido em Geisenheim, e depois estudado e introduzido no arquipélago por técnicos alemães que nos anos 1980 davam apoio à viticultura na Madeira. O casal começou por arrendar as vinhas. Interessava-lhes ficar apenas com uma pequena parte da produção, num instante isso mudou e passaram a ter de aprender não uma mas duas actividades novas. A primeira colheita que fizeram foi em 2017. E o sucesso do vinho foi tal que as vinhas roubaram uma villa ao projecto inicial do hotel "premium" e atiraram a piscina para uns socalcos abaixo no lombo.

O Terra Bona Family Harvest (a família selecciona nas vinhas a uva, bago por bago, "podemos porque são 4400 metros", brinca Marco) é o primeiro e único vinho no mercado, os outros dois (um fermentou e estagiou em carvalho francês, o outro em ânfora de barro) ainda não têm preço e só estarão disponíveis no hotel. O primeiro continuará a ser feito na adega de São Vicente, os outros passarão a ser feitos nas cubas de 500 litros da adega novinha em folha. Num total de 3000 a 3500 garrafas por ano. Este mês, serão lançados três novos Arnsburgers ("os nossos Rieslings") com um bocadinho de Sercial.

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Marco Noronha Jardim, do projecto Terra Bona Nature & Vineyards, na Boa Ventura, São Vicente, costa Norte da Madeira Gregório Cunha
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Os três vinhos Terra Bona, feitos com a casta Arnsburger: apenas um está já no mercado, os outros dois (um fermentou e estagiou em carvalho francês, o outro em ânfora de barro) só será possível beber e/ou comprar no hotel Gregório Cunha

Para além dos Arnsburgers, no futuro haverá vinhos de Terrantez, pela tradição da casta na ilha, e Loureiro, por ser "algo diferente", de plantações feitas entretanto por Marco e Maria João, que têm a enologia entregue a João Pedro Machado, da adega pública, e a viticultura a um tio dela. São mais 2000 metros quadrados de cada. E em Março a família plantará uma nova parcela de Arnsburger, outros 2000 metros quadrados, em biológico. O Arnsburger, garante quem trabalha com ela, é muito produtiva, dá uvas sãs e é resistente às doenças da vinha; no copo tem boa acidez e é aromática. Mas tem um nome terrível, sendo olhada de soslaio pela maioria.

No hotel e nas villas, que abrirão esta Primavera (o mais tardar no início de Maio), o calçado fica à porta, o chão é de cortiça, para maior conforto térmico, há madeira de Kambala escura e pedra de basalto no exterior, pormenores de nogueira na decoração de interiores e, naquela em que entrámos, banheira de relaxamento com vista para a laurissilva. Provas a 30 (hora e meia, na adega) e 90 euros (momento privado nas vinhas, duas horas). Os preços das villas "T1 rondarão os 250 a 300 euros e, no caso do T2, com mezanino, 330 a 450 euros, com mínimo de três noites", partilha Marco.

Um museu no Arco de São Jorge

Bem mais acessível é a visita ao Museu do Vinho e da Vinha, no Arco de São Jorge, concelho de Santana, e rodeado pelas vinhas de um dos dois campos experimentais actualmente a funcionar e geridos pelo IVBAM.

O museu está instalado numa casa com mais de 100 anos, que, em tempos idos, era a antiga adega particular de um homem da terra, o senhor Ferreira. Nesses tempos, explica-nos uma guia, o senhorio ficava com parte do vinho de quem trabalhava a vinha.

A casa foi recuperada pela Associação Santana Cidade Solidária e pela Casa do Povo de Santana e abriu como museu há 16 anos. Nele, vêem-se imagens dos borracheiros. A profissão, nascida no Porto da Cruz, concelho de Machico, caiu em desuso com o desenvolvimento da rede viária na região. E vê-se o borracho que esses homens carregam ao ombro, sobretudo em Câmara de Lobos e no Porto da Cruz. Levavam entre 40 e 50 litros, ficamos a saber.

Mais ou menos o mesmo que um inusitado barril alongado que vemos no museu, e que era usado noutras partes da ilha. Para além desse curioso casco, é possível ver os cestos em bouquet que se usavam nas vindimas, serviam para "acartar" mais uvas sem que as de cima esmagassem as de baixo.

Há três lagares e três prensas, uma mais rudimentar com corda, uma hidráulica e uma manual, espelhando diferentes realidades, e provavelmente diferentes épocas. Com o tempo, as pessoas foram tendo lagares privados em suas casas. Segundo quem nos recebeu, um levantamento recente, feito com o apoio da secretaria regional da Agricultura, dá conta de que no Arco de São Jorge, há 86 lagares privados.

No Museu da Vinha e do Vinho de Santana, na freguesia do Arco de São Jorge, é possível passear junto às vinhas do campo ampelográfico que ali existe Ana Isabel Pereira
O campo ampelográfico do Arco de São Jorge é um dos dois em funcionamento na região e é gerido pelo Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira Ana Isabel Pereira
Quando visitámos o museu no Arco de São Jorge, em Santana, na Madeira, em meados de Janeiro, decorriam os trabalhos da poda Ana Isabel Pereira
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No Museu da Vinha e do Vinho de Santana, na freguesia do Arco de São Jorge, é possível passear junto às vinhas do campo ampelográfico que ali existe Ana Isabel Pereira

O museu é pequeno, mas encerra várias curiosidades, sobre as quais é possível saber mais depois de se deixar o Arco. As peças têm todas códigos QR que dão acesso a fotos e vídeos. Um deles, nas redes sociais do museu, mostra um trabalhador a limpar os barris movimentando-os em cima de calhau rolado.

As três cubas de cimento de outrora, cada com capacidade para 18 mil litros de vinho, são hoje a garrafeira-loja. No exterior, é possível passear à volta da vinha, quando lá estivemos em meados de Janeiro quatro trabalhadores terminavam já a poda. Visita, prova de vinho Madeira 3 Anos e degustação de biscoitos e broas tradicionais da padaria vizinha Doces e Tradições custam 2,5 euros. De segunda a sexta e, a partir de Abril, pela Festa da Flor, também ao sábado.

Artigo corrigido às 15h21, no 9.º parágrafo, onde originalmente se mencionava uma densidade populacional de 1700 habitantes / m2 no Funchal — na verdade esse indicador anda nos 1388 habitantes / m2, de acordo com os resultados definitivos dos Censos 2021 —, e às 17h12, no capítulo sobre os vinhos Terra Bona — são feitos por João Pedro Machado, na adega pública (corrige-se o nome do enólogo).

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