Bianca, uma mulher perfeita

A comunicação e o desporto constituem o seu mundo. Bianca também faz maquilhagens para casamentos.

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Em pequena, Bianca desejava: "Era tão bom ser uma menina" Sasha Freemind/Unsplash

Para Bianca, 2022, foi o ano da sua vida. Foi o ano de ser ela, de uma vez por todas, sem receios, sem hesitações. Dias depois do seu aniversário, em agosto, dirigiu-se ao Registo Civil, e pediu a alteração do ‘nome morto’. É assim que Bianca designa a anterior identificação: ‘nome morto’.

Bianca, 20 anos, fez todo o percurso escolar em Viseu, sempre foi uma boa aluna, e na primária era a menina que levava sempre a bola para jogar. Era feliz. Mas também era a “a menina gay da turma”, apesar de desvalorizar o sentido da expressão. Bianca não tem na memória nenhum episódio que a tivesse traumatizado, mas não nega que começou desde cedo a sentir-se diferente. “Eu lembro-me de pensar que era tudo mais fácil se fosse uma menina, não sabia o porquê desse pensamento. Mas castrava esses pensamentos. Era tão bom ser uma menina. Se eu fosse menina era tudo mais fácil. Eu dizia: ‘Ai! Deus! Faça-me acordar uma menina, a 100%’”, recorda.

Entre os 6 e os 10 anos, sentia que, no contacto com os outros meninos, não conseguia a amizade que queria e não estava confortável perante a forma como os pais a vestiam. Bianca sonhava com saias, vestidos e cabelo comprido. Não era completa, não se sentia ela, mas não comentava com ninguém, tinha medo da reação dos pais. Faltava-lhe coragem, apesar de receber apoio na escola, mesmo que debaixo dos olhares estranhos.

Bianca insiste que não considera ter sofrido bullying e valoriza o facto de ter sido sempre escolhida para delegada de turma ou para encabeçar listas de estudantes. “Às vezes chamavam-me nomes, mas não considero bullying, era desconhecimento, porque sempre me chamavam para brincar. Faziam comentários não muito agradáveis, mas não me excluíam. Eu também não entendia porque era assim, eu própria me sentia um bocadinho anormal com estes pensamentos, simplesmente porque é que eu não nasci uma menina?”

Sempre teve um rosto feminino, apesar de alguns traços masculinos, como a mandíbula mais definida. Na puberdade, deu conta de que o corpo se desenvolvia de uma maneira mais feminina. “Os meus seios começaram a aumentar, a minha anca é fina, mas larga, os meus ombros são finos. Desde os meus 12 anos comecei a reparar, quando estava no balneário, o meu corpo não é igual ao deles”, conta Bianca, garantindo que nunca tomou hormônios, ao mesmo tempo que aponta justificação à Síndrome de la Chapelle, uma variação genética, rara, na qual um indivíduo com cromossoma sexual XX desenvolve naturalmente como genitais um pénis, testículos e escroto. “Tenho o órgão genital de rapaz e estou muito contente com o meu corpo, o meu corpo é excelente, tenho as minhas relações completamente normais. Oito em dez dos rapazes não se importam com o meu corpo, nem com o que eu tenho entre as pernas. Eu olho aqui para baixo e é o meu corpo, não sinto vontade de me castrar”, admite a jovem estudante.

Bianca não quer fazer qualquer alteração ao corpo e acedeu contar o seu testemunho, para que outros(as), se sintam livres como ela. “Isto não é algo da nossa cabeça, de ideologia de esquerda. A normalização é precisa. Quanto mais cedo se falar disto nas ciências, na escola, que este tipo de corpo existe, menos preconceito haverá”, apela.

E sobre preconceito, Bianca não nega que o aspeto mais feminino a impede de sofrer tantos olhares. “Temos uma palavra dentro da comunidade transgénero, que é ‘passibilidade’, o quão uma mulher transgénero consegue passar por uma mulher cisgénero. Eu ando na rua e ninguém olha para mim, entro na casa de banho feminina e ninguém olha para mim de lado, é a melhor sensação que alguém transgénero pode ter: ninguém está a olhar para mim”, desabafa.

Entrou no ensino superior com a convicção de que queria ser jornalista desportiva e o caminho já a está a ser trilhado. Acompanha jogos das ligas profissionais de futsal e futebol. Já trabalhou como estagiária na Académica de Coimbra, enquanto social media manager; é editora de uma aplicação e tem um blogue de desporto, onde publica as suas crónicas de jogo, além de gerir uma página onde partilha conteúdos sobre a Associação de Futebol de Viseu.

Era a primeira opção entrar na Escola Superior de Educação de Viseu, em Comunicação Social. “Devia ter uns 5 anos e o meu pai levou-me a um jogo de futebol, e quando entrei para o 1.º ciclo comecei a ouvir a tarde desportiva da Antena 1. Então, pensei… porque não aliar o futebol à comunicação? O meu pai e o meu avô também foram futebolistas. Ainda queria ter jogado futebol, mas era necessário dinheiro para equipamentos, transporte e a minha família nunca teve muitas posses”, relembra, insistindo que a comunicação e o desporto constituem o seu mundo. Bianca também faz maquilhagens para casamentos, algo que encara como part-time.

A entrada no ensino superior não significou apenas o estar mais próximo do sonho profissional. “Eu entrei mascarada no ensino superior, disfarçada de homem heterossexual, com muito medo da rejeição, mas fiz muitos mais amigos do que no secundário”, diz, visivelmente segura das suas palavras. O apoio dos colegas e um imprevisto de saúde, passageiro, fizeram Bianca concluir de uma vez por todas: “Não vou desperdiçar o resto da vida a ser uma pessoa que não quero ser. Não quero morrer sem ser de facto quem eu sou. E foi aí que pedi a uma médica incrível, consulta no psicólogo, para iniciar a transição de género, tinha 18 anos.”

Da família, Bianca, poupa nas palavras, enaltecendo a mãe, o porto de abrigo: “Contei primeiro à minha mãe, temos uma relação de melhores amigas. A minha mãe perguntou-me diretamente: ‘Tu gostas de rapazes e raparigas?’ Eu nunca falei com os meus pais abertamente sobre isto, até há pouco tempo. Aliás com o meu pai nunca cheguei a falar abertamente, embora me trate como filha com toda a naturalidade e já corrige os colegas quando ouve comentários…”

O ‘nome morto’ causa estranheza e repúdio a Bianca: “Quando olho para trás, quando olho para aquele nome, penso que sofria, não era eu.” Desde agosto de 2022, que passou a ser Bianca, no cartão de cidadão. “Em Portugal é muito fácil, nem foi preciso laudo médico. Não paguei nada. E passado uma semana, tinha o meu nome novo, foi muito rápido, tenho de aplaudir o Governo”, elogia.

Para Bianca, o ano passado, foi o melhor ano da sua vida e a realização inunda-lhe os olhos verdes. “Considero-me uma mulher realizada. Já tive contacto com o futebol profissional. Sou a primeira mulher transgénero no mundo do futebol em Portugal e sinto que contribuo para a normalização daquilo que é raro, mas normal.”

Bianca respira fundo. “A perfeição existe, mesmo sendo algo subjetivo, aos 20 anos, neste momento, sinto-me perfeita. Eu acredito no meu próprio Deus e tenho a minha fé. Ele tem-me ouvido muito e ouviu. A pessoa nasce com isto. E desde cedo sabe. Assumir-se ou não, depende da coragem. Não gosto quando me perguntam: ‘Ah! Então, tu antes eras rapaz.’ Eu nunca fui rapaz. Impuseram-me isso. Por algum motivo, vestiam-me de menino, mas eu sempre fui uma mulher.”


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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