Alfaces e brasões em pedra: um absurdo, uma indignidade

A passagem a pedra dos antigos brasões em topiária do jardim da Praça do Império é uma indignidade que o regime democrático não devia permitir.

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Os brasões em pedra do novo jardim da Praça do Império, que será inaugurado na próxima terça-feira Daniel Rocha

Não pode passar em claro a notícia do PÚBLICO onde se dá conta de como vai ficar a Praça do Império, em Lisboa. Tudo nela ressoa a absurdo, a saloiice (com um pedido de perdão à verdadeira cultura saloia) e, o que é bem pior, a indignidade.

Vamos por partes. Belém é talvez o lugar mais simbólico do contrato social que fez Portugal, e que fizemos nós portugueses. Já aqui escrevi (PÚBLICO, 1/08/2015) que é “um lugar com muitas explicações” e que todas devem ser respeitadas, incluindo a do “ciclone centenário” que varreu o local, destruindo a vida social do bairro, instituindo um não-lugar de “terreiros vandálicos” (uso os termos do antigo presidente da Câmara Municipal de Belém, Alexandre Herculano), próprios para desfiles de tropas e hoje ocupados por turistas.

Neste sentido, pareceu-me de aplaudir a ideia de fazer regressar o espaço de aparato, meio ajardinado, que constitui o centro da Praça do Império ao conceito e projecto inicial de Cottinelli Telmo. Para meu gosto deveria ainda recuperar-se na periferia desse espaço aquilo que fosse possível da antiga memória do local, desde o paredão e cais de origem setecentista ali postos a descoberto aquando das obras preparatórias do Centro Cultural de Belém até ao Jardim Vasco da Gama.

A própria praça deveria readquirir este nome, deixando de se chamar como ainda lamentavelmente se chama. Mas, enfim, contentar-me-ia se fosse finalmente respeitada a memória de Cottinelli Telmo (desagravando-a, entre outras coisas, daquilo que mandou fazer Salazar após a sua morte, comprando à viúva os direitos autorais que permitiram passar a pedra o Padrão dos Descobrimentos, que entretanto ganhou raízes, se tornou património e deve nessa condição ser igualmente preservado).

Vemos, afinal, que alguns “espíritos iluminados” quiseram ir mais longe, acrescentando as marcas do nosso tempo. Umas não passam de ser risíveis. Está neste caso a plantação de uma horta, com alfaces e tudo, em frente ao Mosteiro dos Jerónimos, sob pretexto do que faziam para sua subsistência os frades e se encontra lavrado na pedra do monumento. Pergunta-se então por que não plantar a alface no espaço claustral, ainda disponível e onde, à falta de toda a cerca conventual, se poderia argumentar que poderia “fazer sentido”. Ali, onde era rio, é que dá vontade de rir e parece ser algo resultante de um pensamento que a si mesmo se vê como requintado, paisagístico e pseudo-patrimonial, mas que de todo não me convence e se afigura ser simplesmente deletério, para não dizer absurdo ou bacoco.

O pior de tudo, porém, é a invenção de património pura e simples. Por mais voltas que se dê, por mais justificações elegantes que se procurem, é bem disso que se trata com a passagem a pedra dos antigos brasões em topiária. Já os anteriores, florais, tinham sido uma apostilha espúria e fortuita ao projecto de Cottinelli Telmo. Estes agora, diga-se o que se disser, são um acrescento, uma invenção, do nosso tempo, resultante do que já aqui designei por “infantil obsessão ideológica” (PÚBLICO, 8/02/2021). São uma invenção de gosto e concretização material muito discutíveis, onde tudo cheira a falso, tanto as províncias continentais e insulares, que já não existem, como sobretudo as antigas colónias (pudicamente chamadas de “províncias ultramarinas”, tal como a ditadura fez no pós-guerra, por força das circunstâncias).

Chegados aqui, importa perguntar se pode o regime saído da revolução dos três D (Democracia, Descolonização, Desenvolvimento) cometer tamanha indecência. Claro que esta opção irá satisfazer alguns saudosos do antigamente, a coberto do que chamarão património. Vivemos um tempo em que se tende cada vez mais a normalizar o pensamento do Estado Novo e as coisas estão todas ligadas: em recente convenção do partido político de extrema-direita falava-se com total à vontade de “pátria grande aos olhos de deus”, “províncias ultramarinas” e “assembleia nacional”. Um discurso que vai medrando tanto mais quanto nos deixarmos por ele tomar, primeiro mentalmente, depois, quando for demasiado tarde, fisicamente. Mas, repito, podemos aceitar tranquilamente este deslizar para o abismo?

A mim, que sou patrimonialista, mas não sou conservador nem muito menos reaccionário, nada disto que se prepara para inaugurar em Belém convence ou satisfaz. Pelo contrário, deixa-me profundamente indignado e julgo que deveria chocar-nos a todos, por ser impróprio do nosso presente histórico.

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