O Coração Ainda Bate. Os solitários

Inês Meneses escreve sobre a incompreensão da dor.

Não sei nada sobre ele. Amava a música e a namorada, mas isso não o impediu de se precipitar no traço – aquele traço – que nos separa do perigo. “Não atravessar!” E ele galgou essa linha difícil, a que mais tememos vir um dia a precisar de atravessar. Será o verbo “precisar” acertado? Eu acho que é, mas só quem tem dores se pode, eventualmente, sintonizar com as queixas dos outros.

Quando ouvi, cá em casa, que o Pedro amava a música, foi como se uma pedra me atingisse o coração. Não quero romancear uma crónica que fala de morte e do suicídio de um miúdo que ainda não podia votar ou tirar a carta de condução. Sei lá se isto estava nos planos dele. Amar a música e ter alguém a quem dar a mão todos os dias parece-nos, a quem está de fora, suficiente para não atravessar a linha do risco, mas depois tudo não cabe no entendimento a que os dias nos obrigam. Os dias – as semanas – submetem-nos a uma ordem que cumprimos sem tentar pensar demasiado.

Tenho dois solitários com dois jarros em cima da mesa. Fazem sentido assim e eu admiro-os na sua bravura. Os solitários que neles comportam apenas um (uma flor, um pé), e todos vemos beleza nisso. Às vezes, só queremos ser esse. Noutras vezes, queremos dar a mão, sair do solitário e estar à procura de respostas a dois, para que a vida nos faça mais sentido.

O Pedro não aguentou a vida. Porque a vida não tem a mesma medida para todos. Quando ouvi dizer, da boca de colegas, que ele amava a música, fiquei destroçada. Ainda mais destroçada. Porque na minha fé, agora mais diminuta, acreditava que a música nos salvaria. Salvaria o Pedro.

No Conservatório tocaram músicas de que o Pedro gostava. E quando um chorou, todos choraram. Uma nota e todos sucumbiram. Pelo Pedro e por nós próprios.

A coisa mais comum depois de uma seta destas nos ferir é perguntar: por que acontece? Por que razão alguém nos é subtraído desta realidade para passar ao mundo das saudades? Como estará a escola hoje, segunda-feira, depois da morte do Pedro? O que falta quando ele não esteve na sua cadeira sabendo-se que escolheu não viver ou que perdeu forças perante algo muito maior chamado depressão? Subestimamos – eu também, quando estou feliz – o poder de uma coisa aparentemente abstracta que faz química connosco. Química no sentido em que vem de mansinho e nos rouba a vida todos os dias até tornar insuportável a nossa continuidade.

Nós temos motivos para ser felizes: porque não estamos em guerra, porque temos casa, porque, aparentemente, temos saúde, porque outra mão se agarra à nossa, porque amamos a música, porque, porque... tantas coisas, mas isso não chega. Que estranho. Por que não chega?

O meu coração de mãe, que podia ser só de um solitário com uma flor, chora para dentro a morte do miúdo que os outros viam no corredor da escola e a quem prestaram homenagem na sexta-feira. Todos, todos os que ouvem ou lêem esta crónica, acredito, dariam muito de si para salvar este rapaz. Eu, enquanto escrevo, volto a ter 17 anos e penso que amando alguém vou estar a salvo. Como também amando tantas canções elas me vão proteger: serão o meu escudo, o meu capacete, a minha armadura, a minha capa, o meu cobertor. As canções salvam – pensei eu sempre. E, de repente, a ingenuidade perde-se com a notícia que chega triste e que nos deixa outra vez – outra vez! – sem fé. Até quando vai isto acontecer? Ou, daqui para a frente, a fé vai continuar a perder-se, na proporção de que as canções afinal também não nos salvaram?

O Pedro. Nunca o conheci. Não o vou conhecer. Chorei com lágrimas retidas a dor de a escola, os pais, os amigos, a namorada o terem perdido. É uma dor sem-fim quando não se explica.

A dor da morte que não tem cabimento, mesmo que raramente tenha, faz-nos uma cicatriz para sempre, até quando não estivemos perto. A morte e o amor encontram-se numa linguagem universal que nos aproxima. Parece fácil e superficial falar de tudo isto. Magoa mais do que parece. Ficará mais profunda a dor do que alguma vez poderá ser transcrita.

Era só um rapaz que amava a música e que passeava de mão dada pelos corredores da escola com a namorada. As canções celebraram-no na hora da despedida.

Hoje, o lugar dele estará vago na sala de aulas.

Somos todos solitários onde, às vezes, nem uma flor chega.


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