Juízes querem inteligência artificial nos tribunais, mas não para decidir por eles

Juízes propõem utilizar inteligência artificial como um “assistente judicial electrónico”, tornando clara a sua influência na tomada da decisão final.

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Proposta é de um grupo de reflexão coordenado pelo juiz Nuno Coelho Daniel Rocha

Os juízes querem levar a inteligência artificial para os tribunais, transformando-a, "numa primeira etapa", num "assistente judicial electrónico" que ajude, por exemplo, a escrever sentenças, mas sem que o possa fazer autonomamente, segundo uma proposta de reforma da Justiça.

A proposta consta da síntese do relatório para uma Agenda de Reforma da Justiça, elaborado a pedido da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) por um grupo de reflexão coordenado pelo juiz conselheiro do Tribunal de Contas Nuno Coelho.

Os autores do documento dizem que há "particular interesse no debate sobre as condições ou limites da intervenção da inteligência artificial no processo de decisão judicial", mas salvaguardam a necessidade de um uso regulado da inteligência artificial (IA) e de uma "reflexão profunda" sobre "limites e regras aplicáveis".

No âmbito de uma "transição digital da actividade processual nos tribunais", o relatório propõe a "utilização da IA, numa primeira etapa, como uma espécie de assistente judicial electrónico, para, por exemplo, preparar e auxiliar o juiz na redacção das decisões finais, reconhecer o tipo de argumentação utilizado pelas partes (argument mining) ou analisar dados complexos (data mining)".

Pretende-se também tornar clara a influência da IA na tomada da decisão final para que possa ser posta em causa pelas partes no processo e contestada em recurso judicial, se caso disso, e garantir que não são permitidas "aplicações perniciosas".

O documento traça também linhas vermelhas neste campo: "O impedimento de se criarem algoritmos específicos para a decisão de casos judiciais sem interferência humana do julgador ou que façam predições sobre o comportamento futuro de infractores (por maioria de razão nos processos criminais), podendo, com muita cautela, iniciar-se essa aplicação da IA em processos mais simples de natureza cível, sujeitas depois a reclamação para um juiz 'físico'".

No âmbito do Estado de Direito e dos direitos fundamentais, o grupo de trabalho recomenda que seja ponderada a intervenção de todos os órgãos de soberania na nomeação de juízes para o Tribunal Constitucional, alargando a indicação ou nomeação ao Presidente da República e aos conselhos superiores judiciais. Propõe também o alargamento da possibilidade de recurso para os tribunais superiores sempre que estejam em causa direitos humanos.

Ao nível da cooperação e direito internacional, é proposta maior interligação entre sistemas informáticos que facilitem trocas de informação e a cooperação judiciária internacional e é apontada também a importância da colaboração do sistema judicial com entidades privadas, "essenciais para a obtenção de prova digital" e "apreensão de activos virtuais".

"Devem ser introduzidos mecanismos legais de limitação da encriptação de comunicações e de dados de forma a permitir o acesso excepcional aos mesmos por parte das entidades legalmente autorizadas para o efeito", defende ainda o grupo de trabalho.

Sobre a prestação de contas do sistema judiciário, o documento aponta para apresentações de relatórios anuais dos Conselhos Superiores à Assembleia da República, como acontece com o provedor de Justiça e insiste na necessidade de autonomia orçamental dos tribunais, "em regime de "concordata" com o Ministério da Justiça, com uma lei de programação da justiça, sendo que o sistema judiciário "deverá ter uma intervenção decisiva ou vinculante na decisão sobre a afectação dos recursos necessários à sua missão".

O grupo de trabalho defende também a publicitação das decisões dos tribunais como norma, e uma relação de maior proximidade com a comunicação social, com a nomeação de um juiz em cada tribunal como elo de ligação aos jornalistas. As decisões dos tribunais arbitrais devem ser publicitadas e estabelecidos "requisitos legais objectivos e inequívocos que garantam os necessários padrões de imparcialidade e independência dos árbitros em todos os sistemas de arbitragem".

Sobre o recrutamento de juízes, defende-se que "deverá ser qualificado, não descurando a avaliação de factores de personalidade, de capacidade de resolução de problemas, de resiliência em situações de tensão ou de exposição pública, para além das características de empatia pessoal e de liderança", instando o sector a "promover um novo modelo que seleccione os mais aptos, afaste um academismo deslocado e se centre nas necessidades de capacitação mais do que na replicação do ensino universitário".

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