Associações públicas profissionais: que caminho?

O descontentamento quanto ao novo regime vai surgindo diariamente da parte das mais diversas entidades, como é o caso do próprio Conselho Nacional das Ordens Profissionais.

Costuma dizer o povo que "até ao lavar dos cestos é vindima" e isso é particularmente verdade no caso do projeto de lei que vem alterar o regime jurídico de organização e funcionamento das associações profissionais. O diploma está agora a entrar na reta final do seu percurso havendo ainda passos que podem ser dados no sentido de conseguirmos obter um quadro de regras que seja mais positivo do que negativo para o exercício da advocacia.

Todos conhecemos as iniciativas legislativas do PAN, PS, CH e IL e as propostas que elas encerravam na sua forma inicial e contra as quais nos manifestámos de imediato, alertando para a sua inadequação, nuns casos, e para a sua alarmante perigosidade para o Estado de Direito e para os direitos dos cidadãos, noutros.

Entretanto, essas propostas iniciais passaram pelo debate em plenário, pela apreciação na especialidade – na Comissão de Trabalho, Segurança Social e Inclusão que criou o Grupo de Trabalho “Ordens Profissionais” para preparar a sua discussão e votação – e, finalmente, a aprovação de um texto final, já no passado dia 22 de dezembro (projetos de lei n.ºs 9/XV/1.ª (PAN) e 108/XV/1.ª (PS)).

Nesse percurso, foram apresentados inúmeros contributos em audições a variadas entidades, incluindo a Ordem dos Advogados, e os grupos parlamentares do PSD, PS e PCP apresentaram propostas de alteração, tentando integrar alguns desses contributos com o objetivo primordial e que entendemos ser obrigatório de obter um resultado mais construtivo e produtivo.

No Conselho Regional de Lisboa não ficámos parados e tomámos a iniciativa de (i) alertar para os aspetos que nos pareciam claramente errados e (ii) esclarecer os partidos com assento parlamentar, inclusive, com a organização de debates sobre o tema com a presença de deputados de vários quadrantes.

Apesar de tudo isto, no texto final é percetível o caminho que o legislador desejou seguir e que está, apesar das alterações introduzidas, bastante distanciado do que seria desejável.

Foram integradas respostas a algumas das preocupações manifestadas, designadamente “[a] defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços” (através da permanência da alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro).

Mas todas as nossas restantes preocupações se mantêm e são muitas. Referimo-nos, por exemplo, à ingerência frontal e profunda na forma como os(as) advogados(as) exercem a sua profissão, desde logo na sua formação, ou a autonomia e independência das Ordens que nesta versão é igualmente muito discutível. Pensemos juntos:

  • O que dizer quando na organização das fases eventuais de formação e de avaliação dos estágios profissionais, que é da responsabilidade das associações públicas profissionais, a lei pode “definir o envolvimento de entidades públicas nos procedimentos de implementação ou de execução do estágio profissional ou regimes de financiamento das entidades formadoras públicas e, sendo caso disso, o envolvimento de entidades empregadoras públicas na realização dos estágios”?
  • Ou na avaliação final do estágio que passa a ser da responsabilidade de um júri independente, “que deve integrar personalidades de reconhecido mérito, que não sejam membros da associação pública profissional”?
  • Ou ainda a não sobreposição no período formativo e na avaliação em exame final, quando exista, com matérias ou unidades curriculares que integram o curso conferente da necessária habilitação académica, o que retrata perfeitamente o desconhecimento da realidade formativa das faculdades de Direito e das vicissitudes habituais para o exercício da advocacia decorrentes da prática judiciária.
  • E podíamos continuar com outras inquietações jurídicas resultantes da análise deste texto final, por exemplo, quanto ao Provedor dos Destinatários dos Serviços, ao órgão disciplinar, ao órgão de supervisão, etc.

Mas há aspetos ainda mais graves que queremos evidenciar:

  • A determinação da remuneração obrigatória dos estágios profissionais e os problemas que esta irá acarretar, principalmente aos(às) advogados(as) em prática individual e aos(às) advogados(as) estagiários(as). No limite, e na ausência de soluções para ajudar a custear estes estágios, estaremos perante um constrangimento no acesso aos estágios de advocacia, constituindo, essa sim, uma verdadeira restrição de entrada na profissão.
  • Outro caso é o cumprimento dos deveres deontológicos e de sigilo profissional nas sociedades multidisciplinares que passam a ser “aplicáveis ao exercício das profissões abrangidas”, quando a Ordem dos Advogados não tem poder para os sancionar. Quem o fará? A insusceptibilidade de controlar o cumprimento destes deveres e salvaguardar aspetos de conflitos de interesses e de incompatibilidades de natureza fiscal, regulatória e deontológica é uma porta escancarada para abusos.
  • Por fim, antecipamos grandes complicações na adequação do Estatuto da Ordem dos Advogados a este novo regime jurídico e na própria regulação dos estágios profissionais.

A mim, na qualidade de presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados e enquanto advogado, cabe-me proteger a nossa profissão, agindo junto das entidades competentes e lutando para mitigar os efeitos iníquos que estas alterações implicarão na vida de todos.

Esta atuação implicará forçosamente uma revisão do nosso Estatuto – atenta e pormenorizada – que proteja a profissão, passando, desde logo, pelos estágios que sendo remunerados (algo que sempre defendemos) devem ser custeados pelo IEFP. Algo que ficou por esclarecer pelo legislador…

E, não menos importante, não descurar que, no nosso entendimento, várias disposições deste texto final enfermam de inconstitucionalidades, um aspeto que já suscitou a intenção por parte do senhor Presidente da República de solicitar ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva deste diploma.

Felizmente, não estamos sós nesta que é uma luta conjunta. O descontentamento quanto a este novo regime vai surgindo diariamente da parte das mais diversas entidades, como é o caso do próprio Conselho Nacional das Ordens Profissionais (CNOP) que também já se manifestou. Caminhemos juntos!

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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