Muito sexo e pouco descanso podem estar a matar estes marsupiais australianos

Privação de sono estará a afectar os machos da espécie ameaçada Dasyurus hallucatus, que vivem apenas uma época de reprodução — dias ou semanas após acasalarem, morrem.

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Esta espécie de marsupial é endémica da Austrália GLENN CAMPBELL/Fairfax Media via Getty Images

Semelparidade é o nome da estratégia de espécies ou organismos que vivem apenas uma época de reprodução, morrendo após algum tempo. Os machos da espécie de marsupial Dasyurus hallucatus, endémica da Austrália, são assim: dias ou semanas após acasalarem com diferentes parceiras, procurando gerar bastantes descendentes, morrem.

Para perceber ao certo por que motivo isto acontece, um grupo de investigadores australianos estudou como machos e fêmeas se comportam durante uma época de reprodução. Os resultados, publicados esta quarta-feira na revista científica Royal Society Open Science, vêm dar razão a teorias anteriores: na tentativa de encontrar um número alto de parceiras, os machos percorrerão grandes distâncias, passando pouco tempo a descansar. Por outras palavras, sacrificarão horas de sono para tentar fazer mais sexo — e isto pode estar a ser fatal.​

Os investigadores, das universidades australianas de QueensFland e Sunshine Coast, recolheram dados no Verão de 2019, durante uma época de reprodução da Dasyurus hallucatus. Capturaram de forma provisória sete machos e seis fêmeas, na ilha australiana de Groote Eylandt, e colocaram pequenas mochilas com acelerómetros nas costas destes 13 animais, que depois foram novamente libertados.

Os acelerómetros mediram os seus gastos de energia durante quase um mês e meio (42 dias). A informação foi depois fornecida a um algoritmo, que fora alimentado com cerca de 76 horas de imagens de marsupiais desta espécie. Este previu quais os comportamentos dos 13 indivíduos, com base nos seus consumos energéticos.

Os cientistas referem que, durante os 42 dias, os machos terão descansado apenas 8% do tempo, ao passo que as fêmeas terão passado 24% do tempo a descansar.

Ao contrário dos machos, as fêmeas podem viver até quatro épocas de reprodução, diz o estudo. Mas a organização ambiental australiana Wildlife Preservation Society of Queensland também refere que “menos de 30% das fêmeas sobrevivem até ao seu segundo ano”.

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A última estimativa referente aos números populacionais da espécie apontava para os 100 mil indivíduos, estando em curso um "declínio acelerado" GLENN CAMPBELL/Fairfax Media via Getty Images

Os machos também terão passado mais tempo em locomoção do que as fêmeas. Dois dos sete que foram usados para recolher dados (Moimoi e Cayless, como foram baptizados pelos autores do estudo) terão chegado a percorrer, respectivamente, 10,4 quilómetros (km) e 9,4 km numa única noite. Isto é o mesmo que um humano caminhar 35 a 40 km, segundo estimativas dos investigadores.

Os machos “estão a investir toda esta energia” em “procurar as fêmeas”, porque é assim que “maximizam” a sua eficiência reprodutiva, mas, pelo meio, eles “simplesmente não estão a descansar”, disse Christofer Clemente, co-autor do estudo, ao jornal britânico The Guardian.​

Machos chegam ao fim da época de reprodução num estado “terrível”

No final da época de reprodução, o aspecto físico destes marsupiais é “simplesmente terrível”, acrescentou. “Começam a perder o seu pêlo, começam a não ser capazes de se limpar como deve ser, perdem peso” e “também estão constantemente à luta entre si”, afirmou o investigador da Universidade de Sunshine Coast.

Joshua Gaschk, autor principal do estudo e também ele investigador da Universidade de Sunshine Coast, disse à BBC que a privação de sono pode explicar o porquê de tantos machos morrerem depois da época de reprodução. No entanto, este estudo apenas analisou os gastos de energia dos marsupiais, pelo que não consegue “determinar de forma directa se os machos efectivamente sofreram de privação de sono”.

“Mas eles assumem comportamentos de repouso menos frequentemente, e por períodos de tempo mais curtos, do que as fêmeas”, lê-se no trabalho publicado na Royal Society Open Science. “A privação de sono, e os sintomas a ela associados, tornariam a recuperação impossível e poderiam explicar” o porquê de muitos machos morrerem após a época de reprodução. “Eles tornam-se presas fáceis”, tornam-se também “incapazes de evitar colisões” com automóveis, ou “morrem de exaustão”.​

Outro problema é que os machos atraem um número elevado de parasitas durante a época de reprodução. Isto, frisa o estudo, pode ter que ver com o pouco cuidado que é dado à higiene neste período.

Já existia investigação científica a sustentar que o acasalamento desgasta muito os machos, e que o seu comportamento durante a época de reprodução poderá ser o motivo pelo qual depois morrem, mas especialistas falando sobre outras espécies de marsupial em que a semelparidade também se observa já sugeriram, no passado, outras possíveis causas.

Em 2019, quando um grupo de cientistas australianos viu pela primeira vez na natureza que os machos da espécie de marsupial Dasykaluta rosamondae acabam mesmo por morrer depois de acasalarem, Christopher Dickman, investigador da Universidade de Sydney, falou sobre problemas hormonais.

O especialista (que não fez parte do estudo levado a cabo pelos cientistas que viram este comportamento na natureza pela primeira vez) explicou ao jornal norte-americano The New York Times que, um a dois meses antes da época de reprodução, os machos param de produzir esperma e começam a produzir grandes quantidades de testosterona e corticosteróides. Isto contribui para aumentar o seu desejo sexual, mas também suprime o seu sistema imunitário e deixa os órgãos internos sob stress. “A causa de morte costuma ser úlceras nos intestinos. Há um derrame interno de sangue no seu corpo e os órgãos começam, depois, a entrar em colapso.”

Porquê a semelparidade?

A semelparidade é bastante rara entre mamíferos. Distingue-se da muito mais comum iteroparidade, a condição de espécies ou organismos que têm vários eventos reprodutivos ao longo da vida. Nós, os humanos, somos animais iteróparos, claro.

O grande benefício da semelparidade prende-se com a quantidade verdadeiramente notável de “descendentes que podem ser gerados quando todos os recursos de um organismo estão centrados na reprodução”, explica a publicação britânica Imperial Bioscience Review. “Para ilustrar, a enguia-americana consegue depositar até 8,5 milhões de ovos de uma só vez, enquanto insectos parasitas da ordem Strepsiptera produzem até 750 mil larvas cada um.”

De modo a “optimizar o número de descendentes” e assim procurar garantir a “sobrevivência” da espécie, “os pais estão dispostos a tornar-se fábricas de ovócitos”, acrescenta a Imperial Bioscience Review, num texto em que descreve a semelparidade como “o grande sacrifício parental”.

O “sacrifício” dos marsupiais machos não resulta em números tão astronómicos como os supracitados, no entanto. Por norma, o número de crias que sobrevivem após uma fêmea dar à luz uma ninhada é, no máximo, apenas oito.

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Mapa da Austrália com a distribuição regional desta espécie, de acordo com o IUCN DR

A Dasyurus hallucatus é uma espécie ameaçada, segundo a designação da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). A organização ambiental Australian Wildlife Conservancy diz que a última estimativa referente aos números populacionais apontava para os 100 mil indivíduos, estando em curso um “declínio acelerado”.

A perda de habitat é um dos grandes problemas que fragilizam a espécie, mas um perigo ainda maior é a proliferação em território australiano do sapo-boi, uma espécie invasora. Os marsupiais são envenenados após comerem ou abocanharem este animal.

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