A Epigenética dos Pobres – testemunhos e leituras recomendadas

Creio que a ganância não existe. Será uma invenção de esquerdistas para ofuscar o superior discernimento e a capacidade empreendedora na criação de “regras” de mercado.

Sou trabalhador num supermercado. Tenho um vencimento de 800 euros por mês. Como não posso viver em Lisboa, onde trabalho, passo duas horas por dia em transportes. Os meus dois filhos andam na escola e não tem sido possível acompanhar as suas actividades lectivas, com a vida de trabalho por turnos e o tempo gasto em transportes. O dinheiro nunca chega até final do mês. Com algum crédito que a mercearia de bairro vai facilitando, vamos conseguindo ter alguma margem para fazer refeições, quando o ordenado se dissipa.

Os meus filhos queriam, como outros colegas, ter um telemóvel mais evoluído. Felizmente, o meu CEO, que ganha 200 vezes mais do que eu e vai muitas vezes à Holanda (onde sabem muitas coisas médicas), disse-me que esse desejo infausto dos petizes se devia à epigenética, com consequências na modelação cerebral. Com o subsídio de Natal talvez consiga marcar uma consulta no privado, para fazer uma TAC à cabeça das crianças. O tempo de espera no público é de dois anos, para casos de anseios por smartphones. Parece que os nossos impostos não chegam para as TAC.

Caso de estudo: “A competitividade fiscal e a administração terapêutica de LSD: como passar de famélico a proprietário de um jacto privado”

Sou trabalhadora numa fábrica têxtil nos arredores de Bangalore. Tenho um salário de 300 rupias por dia. Os meus três filhos ajudam no que podem, recolhendo do lixo algumas coisas que ainda têm utilidade e podem ser vendidas.

O mais velho meteu na cabeça que queria umas calças de ganga novas, iguais a aquelas que são fabricadas por mim e pelas minhas colegas. No entanto, o meu patrão, que ganha 3000 vezes mais do que eu e vai muitas vezes ao Dubai (onde tratam muito bem do dinheiro), disse-me que uma proteína que é um dos elementos neurotrópicos fundamentais da plasticidade cerebral, a conhecida BDNF, estava diminuída no meu mais velho, provocando todo o tipo de extravagâncias. Possivelmente a recolha de lixo electrónico não estará a ajudar a sua saúde.

Caso de estudo: “Os desafios da reciclagem de lixo tóxico e a importância da realidade virtual na resiliência das comunidades com a epigenética desfavorecida”

Sou um fascinante cronista que domina todos os assuntos que afectam a humanidade. Depois de ter encontrado a solução médica para a pobreza e incapacidade de decisão dos pobrezinhos, vou dedicar-me a estudar, através de sofisticados modelos matemáticos, a origem e persistência da ganância. Creio que a minha, já testada, metodologia permitirá concluir que a ganância não existe. Será uma invenção de esquerdistas para ofuscar o superior discernimento e a capacidade empreendedora na criação de “regras” de mercado que permitem confundir um jogo viciado com liberdade.

Sugestão de leitura: Os Irmãos Karamázov

Nenhuma ciência lhes dará o pão enquanto estiverem livres, mas acabarão por trazer a sua liberdade até aos nossos pés e por nos dizerem: “é melhor que nos escravizem, mas dêem-nos de comer”. Compreenderão finalmente que a liberdade e o pão terreno farto para todos serão inconciliáveis, porque nunca, mas nunca, conseguirão partilhá-lo entre si! Também se convencerão de que nunca poderão ser livres, porque são fracos, pervertidos, miseráveis e rebeldes […] Vão admirar-nos e considerar-nos deuses porque nós, à frente deles, consentimos em suportar o fardo da liberdade e em governá-los. (F. Dostoiévski, 1880)

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