Sánchez em Marrocos numa tentativa inglória para pôr fim à maldição das crises

Primeiro-ministro espanhol chegou a Rabat sabendo já que não será recebido pelo rei. Mesmo assim, espera que a cimeira de quinta-feira seja um sucesso.

Foto
Sánchez foi recebido pelo homólogo marroquino, Aziz Akhannouch, à chegada a Rabat JALAL MORCHIDI/EPA

O jornal El País chama-lhe uma “maldição”: dois países interdependentes condenados a viver entre crises diplomáticas intermitentes, uma especialmente grave “a cada duas décadas”, capaz de os “pôr à beira de um conflito armado”. Marcha Verde, de 1975; incidente na ilhota de Perejil, em 2002, e entrada de 10 mil marroquinos em menos de dois dias, em Ceuta, em 2021, enumera o diário. Quando Pedro Sánchez decidiu quebrar a neutralidade sobre o Sara Ocidental, apoiando o plano de autonomia marroquino para a região (sem referendo) queria precisamente enterrar de vez as crises. De volta a Rabat, ainda persegue esse objectivo.

À decisão histórica do primeiro-ministro, em Março do ano passado, seguiu-se, em Abril, uma visita a Rabat que lhe permitiu selar a reconciliação, à mesa com Mohamed VI, um encontro que o seu Governo celebrou como tendo permitido progressos “históricos” nas relações com Marrocos. O grande problema é que poucos ficaram escritos – e são ainda menos os que se concretizaram. Ainda assim, o ar que se respira desde então alimenta o sonho de um pacto que ponha fim às crises.

Num primeiro sinal negativo, o anúncio de Rabat, com o presidente do Governo espanhol prestes a aterrar, de que o monarca não vai interromper as suas férias no Gabão para receber Sánchez. Em vez disso, telefonou-lhe, numa conversa de meia hora em que abordaram a cimeira desta quinta-feira, antecipando que “será um êxito” e ajudará a “consolidar a nova etapa nas relações” entre os dois países do Estreito de Gibraltar. Sánchez aceitou ainda um convite do rei para “realizar proximamente uma visita oficial a Rabat”.

Como prova da paz actual, o Governo sublinha o aumento nas exportações para Marrocos (12%) e a queda de 25% (em relação ao ano anterior) das chegadas de pessoas em situação irregular. Num texto para o diário digital El Confidencial, Ignacio Cembrero, veterano jornalista que foi durante décadas correspondente em Rabat e no Médio Oriente, desvaloriza esse dado, fazendo notar que a diminuição também se verifica na imigração a partir de Argélia, país com o qual Espanha está em crise (pela mesma razão que se reconciliou com Marrocos).

Essa diminuição de chegadas é a única verdadeira contrapartida que Madrid obteve no último ano, pouco quando o texto assinado por Mohamed VI e Sánchez referia o compromisso para que as disputas passassem a ser “tratadas com espírito de confiança, através da concertação, sem recorrer a actos unilaterais ou factos consumados” foi nestas palavras que Madrid leu uma alusão implícita à delimitação unilateral por parte de Marrocos das suas águas frente às Canárias e ainda a reabertura da alfândega de mercadorias de Melilla (encerrada por Marrocos em 2018) e a abertura da primeira alfândega comercial em Ceuta.

O que for preciso

Lembrando que o ministro dos Negócios Estrangeiros, José Manuel Albares, confirmou, entretanto, que "as duas alfândegas abririam durante o mês de Janeiro”, Cembrero cita fontes marroquinas ouvidas pelo jornal Hespress para escrever que a alfândega de Ceuta será regional, “um termo confirmado pela Delegação do Governo na cidade e que implica restrições”. “Não existe em nenhum lugar do mundo uma alfândega com estas características”, acrescenta o jornalista.

A verdade é que na última sexta-feira se realizou em Ceuta e em Melilla uma “experiência piloto-com o envio de um pequeno lote de mercadorias a Marrocos”. “Isto é o mesmo que nada”, comentou a Cembrero Enrique Alcoba, presidente da Confederação de Empresários de Melilla.

Espanha continua a fazer o que entende ser preciso para proteger esta relação, ignorando o relatório do Defensor do Povo (Provedor do Parlamento) sobre o massacre na vala de Melilla, especialmente crítico da polícia marroquina – segundo Rabat, morreram 23 pessoas quando cerca de duas mil tentaram passar, em Junho; de acordo com várias ONG, os mortos foram pelo menos 37 – ou votando contra a resolução do Parlamento Europeu que em Janeiro pediu a Rabat um maior respeito pelos direitos humanos.

Marrocos quer mais, sempre com o Sara em vista. Quer, por exemplo, que Madrid inclua as águas do Sara Ocidental nas negociações de delimitação de espaços marítimos. E é para tentar evitar que essa ou outra exigência deslize para crises maiores que Sánchez levou a Rabat 12 ministros socialistas (o parceiro de coligação, Unidas Podemos, não aprova a reconciliação), um número recorde, para assinar 20 acordos de cooperação. No fim, espera voltar a casa a sentir-se mais perto da paz duradoura, mesmo sabendo que o mais provável é Marrocos continuar a querer mais.

Sugerir correcção
Comentar